Anáfora

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No último post, tratei dos dêiticos, que não devem ser confundidos com os anafóricos, assunto deste artigo. De modo geral, a função do dêitico é mostrar algo, enquanto a da anáfora é lembrar algo.

A palavra anáfora provém do grego (ana-“‘para trás” + phorá “ação de levar, trans- portar”, de phoréo “levar”). Seu sentido etimológico (levar para trás) coincide de certa forma com o que essa palavra é empregada nas ciências da linguagem que conceituam anáfora como uma relação de referência a uma expressão textual mencionada no texto, denominada antecedente.

Observe os exemplos a seguir:

Lúcia foi arrolada como testemunha. Ela deverá ser ouvida amanhã.

Os livros estão na mesa, leve-os de volta à biblioteca.

Nesses exemplos, os termos Lúcia e os livros são retomados, respectivamente, pelas formas pronominais ela e os. Temos nesse caso anáfora pronominal.

Atente agora para os exemplos que seguem:

O juiz acatou o pedido da defesa. O magistrado entendeu que não houve crime.

O cachorro deve ser vacinado, portanto, leve o animal ao veterinário.

No primeiro exemplo, o juiz é retomado por um sinônimo, magistrado. No segundo, o termo o cachorro é recuperado por um hiperônimo, o animal. Nesse caso, temos o que se denomina anáfora lexical.

Os anafóricos, por retomarem elementos do texto anteriormente expressos, amarram um termo a outro, funcionando como importantes elementos de coesão textual.

Uma mesma forma gramatical pode funcionar como dêitico ou como anafórico; mas, como disse no primeiro parágrafo, esses conceitos não se confundem. Enquanto a dêixis estabelece com o referente uma relação exóforica (o prefixo grego exo– significa “fora”), ou seja, o referente não é algo presente no texto, mas na situação comunicativa; a anáfora estabelece uma relação endofórica (o prefixo grego endo– significa “dentro”), ou seja, o referente está expresso anteriormente no próprio texto. Observe o exemplo a seguir.

Natália tinha uma pasta. Ali costumava guardar seus documentos.

— Onde devo pendurar o quadro?
Ali.

No primeiro exemplo, o advérbio ali retoma um termo anteriormente expresso no texto (pasta); foi empregado, portanto, com valor anafórico. No segundo, a palavra ali foi empregada como dêitico, na medida em que aponta para algo que não está presente no texto, mas no contexto enunciativo. Retomando o que disse no primeiro parágrafo: dêiticos têm por função “mostrar”; anafóricos têm por função “lembrar”.

Veja, a seguir, o emprego dos pronomes demonstrativos (este, esse, aquele) em função dêitica e anafórica.

Em função dêitica, os pronomes demonstrativos articulam-se de acordo com a oposição espaço da enunciação versus espaço fora da cena da enunciação. Ao espaço da enunciação correspondem os pronomes demonstrativos este(a) / esse(a). O primeiro se refere ao enunciador, portanto àquele que diz eu; o segundo, ao enunciatário (tu/você). Ao espaço fora da cena enunciativa corresponde o demonstrativo aquele(a). Observe.

Este livro que está aqui comigo e que leio agora trata do emprego dos pronomes.

Esse livro que está aí contigo também trata do emprego dos pronomes.

Aquele livro que está com Gabriela trata de coesão textual.

No primeiro exemplo, o pronome este, em função dêitica, indicando que o livro se encontra no espaço do enunciador (eu); no segundo, o demonstrativo esse aponta para um livro que está no espaço do enunciatário (tu/você). No terceiro, a indicação é de livro fora do espaço da enunciação.

O quadro que segue apresenta de maneira didática e resumida o uso de demonstrativos e advérbios em função dêitica indicando a categoria espaço.

Em função anafórica, os demonstrativos não fazem referência à situação enunciativa, mas a elementos presentes no próprio texto, com a finalidade de retomá-los. Observe o trecho que segue.

E no entanto era Diaz-Varela que eu via agora como Chabert. Este havia sofrido amarguras e penas sem conta e aquele as tinha infligido, este tinha sido vítima da guerra, da negligência, da burocracia e da incompreensão, e aquele tinha se constituído em carrasco e havia perturbado gravemente o universo com sua crueldade, seu egoísmo talvez estéril e sua descomunal frivolidade. Mas os dois tinham se mantido à espera de um gesto, de uma espécie de milagre, de um alento e um convite, Chabert do quase impossível reenamoramento de sua mulher e Díaz-Varela do improvável enamoramento de Luísa, ou pelo menos do seu consolo junto dele.

O narrador introduz no texto duas personagens: Diaz-Varela e Chabert, que são retomadas na sequência textual por pronomes demonstrativos em função anafórica. Este retoma Chabert e aquele Diaz-Varela. Observe que o emprego desses demonstrativos em função anafórica “costura” expressões do texto, amarrando-as uma nas outras, conferindo coesão ao texto.

Dêixis e anáfora são assuntos de que trato em meu último livro Práticas de leitura e escrita, recém-lançado pela Editora Saraiva. Para adquiri-lo, clique aqui.

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