O titês e o idioleto

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Época de Copa, piadas e memes rolando soltos. Neymar parece ser a bola da vez, mas vou falar do Tite, ou melhor, da linguagem do Tite, o titês, também motivo de piadas. Antes, porém, é preciso explicar o que é idioleto.

Já falei aqui da variação linguística. Comentei que a língua varia em decorrência de diversos fatores (geográficos, históricos, contextuais etc.). Há também o jargão, a língua de certos grupos sociais e profissionais, como o juridiquês e o economês, linguagem própria de profissionais do Direito e de economistas, respectivamente. Se o jargão é a linguagem de um grupo, o idioleto é a de um indivíduo. O titês é um exemplo de idioleto.

A caricatura pega um traço e o exagera a fim de obter sentido de humor. Um dos traços que usam para fazer humor com o Tite é seu idioleto, especialmente o uso que ele faz da terminação -bilidade, a mesma que aparece em portabilidade. Tite gosta de usar, por exemplo, a palavra treinabilidade. Na charge abaixo, o humorista põe a palavra chorabilidade na boca de Tite para obter efeito cômico.

Titês

Evidentemente não consta dos dicionários a palavra chorabilidade, tampouco o Tite deve tê-la usado. Mas onde o chargista foi buscar essa palavra? Na língua, valendo-se de elementos que têm existência no idioma e que permitiram que se formassem palavras como aceitabilidade, confiabilidade, flexibilidade, invencibilidadeirritabilidade, vulnerabilidade etc.

Notem que todas apresentam a terminação -dade que forma substantivos (nomes) derivados de adjetivos (qualidades). No caso, esses adjetivos terminam em -vel: aceitávelaceitabilidade; flexívelflexibilidade, invencívelinvencibilidade; vulnerávelvulnerabilidade.

Mas como essa terminação -vel acabou dando origem à terminação -bilidade? Simples: esse -vel em latim era –bil(i). Na hora de se juntar a terminação -dade, ela foi acrescida não à terminação portuguesa -vel, mas à latina -bil(i), por isso o resultado não foi flexivelidade (flexível + idade), invencivelidade (invencível + idade), vulneravelidade (vulnerável + idade), mas flexibilidade (flexi + bili + dade), invencibilidade (invenci + bili + dade), vulnerabilidade (vulnera + bili + dade).

Como conhece a regra, Tite pode criar palavras como treinabililidade (treina + bili + dade) para designar algo que pode ser treinado, que é treinável. Você pode estar perguntando: o Tite é linguista ou gramático? Que eu saiba não. O Tite é técnico de futebol e já foi jogador. Ele conhece, assim como você e todos os demais falantes da língua portuguesa, essa regra. Isso ele não aprendeu na escola, ou lendo livros de gramática. Trata-se de um conhecimento intuitivo que todos os falantes da língua internalizam desde tenra idade, independentemente de terem recebido educação formal. Uma criança diz que vai vassourar a casa porque já internalizou a regra que colocando a terminação AR num substantivo ela forma um verbo, como em telefonar (telefon + ar). Ela não sabe que a palavra telefone é substantivo e que telefonar é verbo. Isso ela vai aprender muito depois, quando for à escola, onde, na verdade, vai aprender a nomenclatura gramatical. Se ela não aprender isso na escola, continuará usando a língua do mesmo jeito. Ninguém deixou de falar ou de entender o que os outros falam por não saber que telefone é substantivo e telefonar é verbo.

Os falantes da língua não precisam ir à escola para aprender que o artigo vem antes do substantivo e não depois dele. Vejam que nenhum falante diz menino o ou mochila a. Por quê? Porque já internalizam essa regra desde pequeno. Não precisam saber que o e a são artigos e que menino e mochila são substantivos. Menos ainda que o e a são artigos definidos e que menino e mochila são substantivos simples, primitivos e concretos. Isso é um saber SOBRE a língua. Aí é que mora o perigo: quando se deixa de ensinar a língua para ensinar a metalinguagem, ou seja, o nome das coisas.

Espero que o Tite consiga controlar a irritabilidade do Neymar e a chorabilidade de alguns atletas para evitar a vulnerabilidade de uma seleção que tem muita visibilidade e cujos atletas desfrutam de confiabilidade, pois se caracterizam pela responsabilidade. Agora, como nossa invencibilidade foi quebrada e estamos fora da Copa, não nos entreguemos à lamentabilidade.

Viva o Tite e o titês e, como se dizia antigamente, “salve a Seleção”. Agora eu é que fiquei com uma dúvida metalinguística: não sei se usei o SALVE como uma interjeição ou como um verbo.

1 comentário


  1. Parece que era o verbo. Aliás, “no início, era o verbo”, já! Mesmo assim, não chegou a tempo. Pena.

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