Quando dizer é fazer: a teoria dos atos de fala de Austin

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Este texto relaciona-se com artigo anterior, publicado aqui no blogue, em que trato dos atos de fala e a linguagem jurídica. Neste, retomo o que lá foi discutido e trago novas considerações sobre a Teoria dos Atos de Fala, do filósofo inglês John Langshaw Austin ( 1911 -1960), a partir da leitura de seu livro How to do Things with Words (Como fazer coisas com as palavras), de 1962. Há uma tradução do livro em português feita por Danilo Marcondes de Souza Filho, com o título de Quando dizer é fazer, publicada pela Editora Artes Médicas, infelizmente esgotada há muito.

Sobre o livro

Quando dizer é fazer reúne 12 conferências proferidas pelo filósofo inglês em 1955 na Universidade de Harvard que tiveram por base as aulas que Austin ministrou entre 1952 e 1954, na Universidade de Oxford, cujo tema central foi Palavras e ações.

Como fazer coisas com as palavras, de John Austin (1911-1960)

Como essas conferências eram destinadas ao público geral e não apenas a seus parceiros filósofos, a linguagem utilizada no livro, em princípio, não oferece muitas dificuldades, isso não significa que o livro de Austin seja de leitura fácil. Pelo contrário, dada a originalidade e profundidade dos conceitos apresentados, a compreensão do texto requer bastante esforço por parte do leitor.

O livro de Austin apresenta um caráter bastante inovador. De todas as ideias apresentadas pelo filósofo inglês, sem dúvida alguma, a que mais chamou a atenção e a que teve maiores desdobramentos foi a que usamos a linguagem não apenas para transmitir informações. Austin destaca (e o título da obra já permite antever isso) que a linguagem também é usada para praticar ações, ou seja, dizer é também fazer, no sentido de que se tenta, pela linguagem, agir no comportamento do interlocutor.

Pragmática

Ao ler a obra de Austin, deve-se levar em conta que se está em contato com o pensamento de um filósofo da linguagem e não com o de um linguista. Evidentemente as reflexões de Austin sobre a linguagem tiveram influência nos estudos e no desenvolvimento da linguística. As ideias do filósofo serão responsáveis pela chamada “virada pragmática” da linguistica moderna. A pragmática trata da relação entre a linguagem e seus usuários. Estuda as formas linguísticas em uso, daí o estudo da língua deslocar-se da sentença para os atos de fala e as condições em que eles ocorrem.

A pragmática difere da semântica. Para entender a diferença, tomemos uma sentença como “O trânsito está péssimo”. A semântica verifica em que condições essa sentença é verdadeira.  Para o semanticista, ela é verdadeira se, e somente se, existe um tráfego de veículos naquele instante e este apresenta a propriedade de estar péssimo e o significado da sentença é dado pelas palavras que a compõem: o + trânsito + está + péssimo.

Em situações de uso, o sentido dessa sentença pode ser uma desculpa dada por alguém por chegar atrasado a uma reunião, por exemplo. Acrescentou-se ao sentido original (linguístico) um outro “sentido”, que revela a intenção do falante ao proferir a sentença, no caso justificar o atraso ou desculpar-se por ele. Quando alguém entra em um ambiente e diz “O som está muito alto”, não está constatando que o volume produzido por um aparelho esteja alto; na verdade a esse sentido está agregando outro cujo objetivo é fazer com que o interlocutor diminua o volume. Esse novo sentido, que vai além do significado que a sentença significa, é objeto de estudo da pragmática.

Teoria dos atos de fala

Para Austin, a linguagem não tem apenas uma função constatativa, ou seja, ela não é utilizada apenas para descrever o mundo das coisas e dos acontecimentos, ela também é uma forma de ação intencional.  Ao se usar a linguagem, não apenas se diz alguma coisa, mas também se faz algo. Para Austin, todo dizer é um fazer. A teoria dos atos de fala não focaliza a sentença, mas o ato. Isso deixa claro que as considerações que Austin faz sobre a linguagem estão além do linguístico; trata-se, como se afirmou, de uma visão filosófica sobre a linguagem.

Pelos atos de fala, realizamos uma ação semântica, ou seja, pela enunciação linguística, o falante expressa conscientemente uma determinada significação. Além disso, essa ação semântica ( o dizer algo) é produzida com determinada intenção (ordenar, advertir, censurar, condenar, absolver, ironizar, batizar, prometer, etc.). Os atos de fala têm, portanto, propósitos pragmáticos. A linguagem é vista como forma de ação e não de simples representação.

Atos constatativos e atos performativos

Em sua primeira conferência, Austin estabelece uma distinção importante entre os atos de linguagem. Atos constatativos e atos performativos. Os primeiros narram ou descrevem algo; os segundos fazem algo. Para entender a diferença observe-se que certas expressões em determinados jogos, como truco, passo, bati, xeque, dobro, etc. não são usadas para descrever ou narrar o jogo, mas para expressar as ações que os jogadores realizam durante a partida, tanto que, ao pronunciá-las, altera-se o status do jogo; têm, portanto, caráter performativo. Para tornar clara a diferença entre ato constatativo e ato performativo compare as sentenças abaixo.

(1) Pedro jurou dizer a verdade.

(2) Juro dizer a verdade.

A primeira narra um acontecimento, que pode ser verdadeiro ou falso. Na segunda, quem fala executa a ação de jurar, ou seja, ele não diz simplesmente que jura, ele efetivamente jura. A primeira é um ato de fala constatativo, na medida em que descreve (narra) um evento; a segunda é um ato de fala performativo, pois pelo seu simples proferimento executa-se a ação de jurar. Nesse caso, não há o que se discutir se a sentença é verdadeira ou falsa, mas se ela é feliz ou infeliz, ou seja, se o falante, ao pronunciá-la, foi sincero ou não; se vai dizer a verdade ou realmente ou não. Observe mais alguns atos de fala performativos.

(3) Aceito esta mulher como minha legítima esposa.

(4) Eu o condeno a uma pena de reclusão de seis anos.

(5) Declaro aberta a sessão.

(6) Aposto cem reais que ele não vai para o segundo turno.

(7) Eu batizo essa criança.

(8) Declaro-vos marido e mulher.

Ao proferir (3), o falante executa a ação de aceitar a mulher como esposa. Por esse proferimento, seu estado muda de solteiro para casado. Na (4), dita por um juiz competente, não se diz apenas que se está condenando alguém; executa-se o ato de condenar. Há uma mudança de status do enunciatário que, pelo proferimento do enunciado, passa ao estado de culpado. Na (5), o proferimento do enunciado tem o poder de abrir a sessão; na (6) não se diz apenas que se aposta, executa-se a ação de apostar. Na (7), executa-se a ação de batizar pelo proferimento das palavras Eu batizo. Na sentença (8), o proferimento da sentença realiza o casamento.

Há certos textos cuja função é estabelecer ou revogar direitos, tais como procurações, testamentos, escrituras de compra e venda, de doação, de cessão de direitos, etc. Esses textos não apenas descrevem atos (não são simplesmente constatativos), mas estabelecem relações jurídicas entre pessoas, criando direitos e deveres. Alguém, por exemplo, que nomeia outra pessoa seu procurador, confere a essa pessoa poderes para agir em seu nome, ou seja, a procuração não descreve um um acontecimento, mas realiza o ato de constituir um procurador, é um ato performativo, portanto.

Para que os atos de fala se realizem é necessário que as circunstâncias em que foram proferidos sejam adequadas, pois o proferimento das palavras é apenas uma das ocorrências do ato, ou seja, deve haver uma instância  extralinguística que legitima o ato. Quem diz que Condeno Fulano a uma pena de reclusão, deve ter a competência para isso (um juiz, por exemplo). Quando se diz Aposto cem reais, é preciso que o interlocutor aceite a aposta, dizendo “topo“, ou “aceito“, por exemplo, para que a aposta se realize. Se o autor deste artigo, por exemplo, sair à rua a gritar alto e bom som Declaro guerra aos Estados Unidos, evidentemente seu proferimento não terá o condão de pôr o Brasil em guerra com os Estados Unidos. Na realidade, ao dizer tal frase, provocará risos ou desconfiança de que não está em seu perfeito juízo. Um ato de fala como Declaro-vos marido e mulher só produzirá efeito, isto é, realizará o casamento, se dito por pessoa habilitada a fazê-lo (o Oficial do Registro Civil) e se os noivos estiverem habilitados para casar (serem maiores de idade, capazes, não estarem casados com outras pessoas).

Como se pode observar, os atos performativos apresentam, do ponto de vista linguístico, apresentam o verbo na 1a. pessoa pessoa do presente do indicativo, na voz ativa: juro, condeno, batizo, nomeio, cedo, vendo, etc. A língua, no entanto, possui mecanismos que permitem usar uma pessoa gramatical no lugar de outra. Assim, por exemplo, pode-se usar a 3a. pessoa no lugar da 1a., em vez de Nomeio é possível dizer Fulano de Tal nomeia para exercer o ato de nomear. Em outros casos, pode ocorrer o uso da construção passiva no lugar da ativa: Pelo presente, nomeia-se o Sr. Fulano de Tal como procurador… Nesse caso, a expressão “pelo presente”, indica que o proferimento escrito da sentença é o instrumento que realiza o ato de nomear (vender, ceder, doar, etc.).

Ato locucionário, ilocucionário, perlocucionário

Na conferência 8 e seguintes, Austin estuda os níveis de atos de fala, fazendo a distinção entre atos locucionários, ilocucionários e perlocuonários.

Ato locucionário é aquele pelo qual se diz algo, é o proferimento de uma locução com determinado sentido e referência, por exemplo, Pedro jurou dizer a verdade. O ato ilocucionário consiste na realização de um ato pelo seu proferimento (é performativo, portanto). Seu proferimento é dotado de certa força, chamada força ilocucional, que pode ser de ordenar, prevenir, avisar, etc., por exemplo, Juro dizer a verdade. O ato perlocucionário consiste em dizer algo para produzir certos efeitos sobre o interlocutor. Refere-se, portanto, aos efeitos do proferimento do enunciado: convencer, persuadir, confundir etc. Os atos perlocucionários podem ou não alcançar o objetivo pretendido. Quando alguém, por exemplo, diz Ordeno que te cales, realiza o ato ilocucionário, mas o efeito pretendido pode não ser alcançado.

Por último, mas não menos importante, a distinção que se faz entre ato locucionário e ato ilocucionário decorre de uma abstração, pois os atos linguísticos são locucionários e ilocucionários de uma só vez. De outra forma, no procedimento constatativo, o que se faz é simplesmente abstrair seus aspectos ilocucionários (e perlocucionários também), concentrando-se apenas no aspecto locucionário. No procedimento performativo, o proferimento dá a máxima ênfase à força ilocucionária.


6 Comentários


  1. Professor, estive ontem (30/08) na sua palestra na Fundação Santo André, na semana de Letras 2018, e fiquei muito feliz em conhecê-lo. Me formei ano passado na FSA e, felizmente, pude aproveitar essa oportunidade. Agradeço a sua disponibilidade, simpatia e atenção em nos atender. O tema é muito interessante e nos provoca fortes reflexões sobre o ato de fala. Trabalho em um cartório de Registro Civil e este post, assim como a palestra, reforça os atos praticados por mim aqui – há a necessidade de acautelar-se com tudo o que é dito e escrito (atestando um óbito erroneamente, podemos “matar” quem está bem vivo!). A palavra tem força e a Linguística mostrou muito bem isso. A palavra define, muda a vida das pessoas. É impressionante o poder do ser humano com seu ato de fala e o que pode acontecer com ele, não é mesmo? Mais uma vez, obrigada por compartilhar conosco seus conhecimentos. Saudação fraterna.

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