Repetição de palavras é defeito?

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Há uma discurso que circula, sobretudo na escola, que afirma ser defeito grave a repetição de palavras na produção de um texto. Professores, munidos de caneta vermelha, ao corrigirem redações de seus alunos, costumam ser ávidos em assinalar palavras que se repetem, solicitando aos estudantes que evitem isso porque empobrece o texto. Repetição de palavras é mesmo um defeito?

A resposta a essa questão não comporta um resposta em termos de sim ou não (embora eu ache que muita gente diga que sim). O problema é mais amplo e tem muito a ver com a expressividade e força argumentativa do texto. Se a repetição não contribui em nada para isso, tem mesmo de ser evitada, pois acaba passando a imagem de um enunciador que não tem um bom domínio da língua, especialmente do vocabulário. Pode também passar a ideia de desleixo, de que o texto foi redigido às pressas, sem que se efetuasse uma revisão.

Para evitar repetição, há sempre o recurso da substituição de uma palavra por outra. Isso pode ser feito por um item gramatical, ou seja, por pronomes (ele, ela, seu, sua, o, lhe que, cujo etc). Pode-se também substituir uma palavra por item lexical, por exemplo, um sinônimo, um hipônimo, um hiperônimo, um termo genérico. Pode-se, ainda, omitir a palavra que iria ser repetida, deixando-a implícita no contexto. Nesse caso, outros elementos do textos permitirão identificar a palavra que se omitiu.

O recurso da substituição de uma palavra por um item lexical ou gramatical, mais do que evitar a repetição, permite estabelecer relações de identidade de sentido de um termo com outro (correferência), garantindo a coesão textual.

Há casos em que se repete um item lexical ou gramatical intencionalmente, para enfatizar uma ideia. Nesse caso, a repetição tem função argumentativa, pois visa conseguir a adesão do leitor ou do auditor. Há figuras de retórica que tratam da repetição de palavras, como o polissíndeto (repetição de uma mesma conjunção), a anáfora (repetição de uma mesma palavra no início de versos ou parágrafos), o quiasmo (repetição cruzada). Vejam alguns exemplos:

“Dia virá em que ficarão com sede, muita sede, e não terão água para beber: os rios e lagoas e valos e regatos e até a água da chuva estarão sujos e pobres. E chorarão. E continuarão com sede porque a água do choro é salgada e amarga.” (Werner Zotz)

Olha a voz que me resta / Olha a veia que salta / Olha a gota que falta.” (Chico Buarque)

“No meio do caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho” (Carlos Drummond de Andrade)

“Não sei se fato ou se é fita / Não sei se é fita ou se é fato/ O fato é que ela me fita / Me fita mesmo de fato” (Trova acadêmica, cantada pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).

No primeiro exemplo, temos um polissíndeto, repetição da conjunção aditiva e; no segundo, um exemplo de anáfora (repetição da palavra olha no inicio de cada verso. No terceiro, temos um exemplo de quiasmo, repetição cruzada (em forma de X).

A trova acadêmica é construída basicamente sobre repetições. Repetem-se as mesmas palavras, ora no início dos versos (anáforas), ora de forma cruzada (quiasmo). Se avançarmos um pouco, veremos que a repetição de palavras implica a repetição de mesmos fonemas. Observe os fonemas consonantais /f/ e /t/, que se repetem, formando uma aliteração e a os fonemas vocálicos /a/ e /i/, que também se repetem, configurando uma assonância. E temos ainda a repetição de mesmas estruturas sintáticas e rítmicas. Tudo isso contribui para a expressividade do texto e sua memorização. Basta ouvi-lo uma única vez para que ele fique guardado em nossa memória.

No texto que segue, extraído do livro O diário de Anne Frank, observe que a narradora INTENCIONALMENTE repete a palavra judeus para mostrar que judeus eram segregados e nada podiam fazer sob o domínio dos nazistas.

“Depois de maio de 1940, os bons tempos foram poucos e muito espaçados: primeiro veio a guerra, depois a capitulação, em seguida a chegada dos alemães, e foi então que começaram os problemas para os judeus. Nossa liberdade foi seriamente restringida com uma série de decretos antissemitas: os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos de andar de carro, mesmo que fossem carros deles, os judeus deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde; os judeus deveriam frequentar barbearias e salões de beleza de proprietários judeus; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã; os judeus eram proibidos de comparecer a teatros, cinemas ou qualquer outra forma de diversão; os judeus eram proibidos de frequentar piscinas, quadras de tênis, campos de hóquei ou qualquer outro campo de atletismo; os judeus eram proibidos de ficar em seus jardins ou nos dos amigos depois das oito da noite; os judeus eram proibidos de frequentar casas de cristãos; os judeus deveriam frequentar escolas judias. Você não podia fazer isso nem aquilo, mas a vida continuava”.

Se você fizer uma contagem, observará que a palavra judeus aparece 13 vezes nesse trecho. Neste caso, a repetição não deve ser vista como um defeito, mas como constitutiva do estilo. Além disso, a reiteração do item lexical judeus contribui não só para garantir a coesão do texto na medida em que amarra ideias umas às outras, como também é importante recurso para conferir força argumentativa ao enunciado. Note que, ao repetir várias vezes essa palavra, a narradora chama a atenção para o fato de que aos judeus não era permitido fazer quase nada.

O outro exemplo que trago para mostrar que a repetição de uma mesma palavra pode contribuir para a expressividade e força argumentativa do texto é de Cruz e Sousa, que aparece no poema em prosa Emparedado, do livro Evocações

“De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto sombrio, tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe, para muito longe, ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da Saudade, transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos Destinos!..”

Vejam que a repetição exaustiva da palavra sangue (9 vezes) é intencional. Por meio da recorrência a esse item lexical, o poeta acentua a ideia de sofrimento.

Como se deve ter observado pelo comentários e exemplos que trouxe a este artigo, não se pode afirmar peremptoriamente que a repetição de uma mesma palavra empobrece o texto, constituindo um defeito e, por isso, devendo ser evitada. Cada caso é um caso e o que vale afinal de contas é observar se a repetição confere ou não força expressiva ao texto, ressaltando que usamos a palavra expressividade não como sinônimo de embelezamento, mas de força argumentativa.

4 Comentários


  1. Essa é uma importante reflexão para nós, professores da educação básica, que seguimos as recomendações dos manuais didáticos, sem verificar na realidade da língua, como esse recurso é utilizado. Esse artigo foi muito útil para as minhas aulas. Grata!

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