Algumas reflexões sobre erro

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Há um certo tipo de pessoa que se põe no papel de guardião da língua. São indivíduos que, por terem recebido educação formal, acham que podem opinar sobre questões de língua, embora não tenham nenhum conhecimento linguístico. O pior é que os grandes veículos de comunicação dão guarida a essa gente que vive a apontar erros na fala dos outros e a ditar regras sobre o que é certo ou errado em matéria de língua. Os próprios jornais são extremamente críticos em relação a professores, atribuindo muitas vezes a eles a culpa por problemas de domínio da linguagem pelos alunos, dizendo que hoje ensinam que não há mais certo ou errado, que se pode falar “errado”.

Pois bem, essa questão do erro em língua é complexa; mas, para simplificar as coisas, vamos adotar o seguinte critério: será errada a construção que prejudicar a apreensão do sentido. Dessa forma, quando se vê uma placa em que constam os dizeres Aluga-se casas, não há erro algum, embora muitos gramáticos afirmem que o correto é Alugam-se casas. Todo mundo, ao ver escrito Aluga-se casas, sabe o que quem colocou a placa quer dizer. Não há como não entender ou dar uma interpretação diferente da pretendida.

No entanto, as coisas não são tão simples assim. Dependendo de quem fala, para quem fala e de onde se fala, muitas vezes uma fala que é compreensível para quem ouve pode ser considerada errada. Isso ocorre quando a pessoa utiliza uma variedade linguística não adequada ao contexto comunicativo. Alguém que encontra uma pessoa cujo pai morreu naquela semana e diga “Porra, soube que teu velho bateu as botas. Que merda!” está usando uma variedade da língua inadequada à situação. O outro vai se sentir desrespeitado e ofendido. Os meios de comunicação que dão guarida aos guardiões do idioma deveriam eles próprios servirem de exemplo. Ilustro com o que ouvi sábado em uma rádio de São Paulo.

Falava-se sobre o prédio que pegou fogo e desabou dia 1 de maio, no Largo do Paissandu, em São Paulo. O âncora chama o repórter e este diz que há ainda muito entulho no local e a Prefeitura está ainda providenciando a remoção. Dada a quantidade de entulho e para acelerar os trabalhos, o repórter diz que a Prefeitura Regional da Sé, a encarregada de fazer a remoção do entulho, emprestou caminhões e tratores.

Ora, o ouvinte certamente entendeu o que o repórter pretendeu dizer, mas houve um ruído. Como que é? A Prefeitura Regional da Sé, que está tendo dificuldade para retirar o entulho, empresta máquinas e tratores de outras prefeituras?

Evidentemente o que ocorreu e o que o repórter pretendeu dizer é que outras prefeituras regionais emprestaram máquinas e tratores à Prefeitura Regional da Sé. Emprestou é um verbo na voz ativa, isso significa que o sujeito dessa forma verbal deverá ser aquele que executa a ação de emprestar e não aquele que recebe o empréstimo. Se ele coloca como sujeito a Prefeitura Regional da Sé, teria de pôr o verbo na voz passiva, por exemplo, Caminhões e tratores foram emprestados à Prefeitura Regional da Sé por outras prefeituras regionais, ou usar um outro verbo formando uma expressão, como A Prefeitura Regional da Sé recebeu por empréstimo ou tomou emprestados tratores e caminhões.

A fala do repórter deve ser considerada um erro? Entendo que sim. O contexto da notícia, a posição de quem fala, o fato de falar numa emissora de rádio, especialmente num programa de notícias, determinam que o repórter deva se valer da variedade culta da língua portuguesa.

Alguém poderia argumentar que o deslize do repórter se deu porque se trata de um texto falado e, nesse caso, o  monitoramento é mais frouxo. De fato, no texto escrito, percebido o desvio, há tempo para reformular o texto. Ressalto que, dada a situação comunicativa, mesmo se tratando de texto falado, a fala do repórter constitui um erro.

Se poderia haver alguma desculpa que atenuasse o erro no texto falado, no texto escrito o erro é indesculpável como neste trecho de matéria da Folha de S. Paulo, de 14 de maio de 2018, p. B1.

Vozes verbais

O PM foi perseguido pelo ladrão é uma voz passiva, ou seja, o sujeito PM sofre a ação de ser perseguido. O agente é o ladrão. Na voz ativa, teríamos O ladrão perseguiu o PM. Isso é claro. Ocorre que adiante o texto diz: “…até surpreendê-lo e atingi-lo com tiros”, ou seja, o PM (sujeito passivo de foi perseguido) passa a ser sujeito agente de surpreender e atingir, cujo paciente é o ladrão. Em resumo: o PM surpreendeu e atingiu o ladrão com tiros. Depois de algum esforço, podemos compreender então que o o PM não foi perseguido pelo ladrão, mas que perseguia o ladrão.

Embora não haja nenhum desvio em relação a normas de concordância, regência, flexão de palavras, pontuação etc., e levando em conta o contexto da notícia, um jornal de grande circulação da imprensa dita séria, há um erro no texto, na medida em que dificulta seu entendimento.

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