Gêneros e ações discursivas

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No artigo, procuro estabelecer a distinção entre gêneros e ações discursivas. Estas últimas vão configurar os tipos de textos, um conjunto bastante restrito. As ações discursivas se manifestam em diversos gêneros textuais, que, ao contrário dos tipos textuais, constituem um conjunto aberto e praticamente infinito. Este artigo serve como introdução ao assunto tipos textuais a ser tratado num próximo post. Para ilustrar a distinção entre gênero e tipo textual, comento, em rápidas palavras, um fragmento de texto do livro O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era, escrito pela neurocientista norte-americana Maryanne Wolf, e publicado no Brasil pela Editora Contexto.

São macroações discursivas narrar, descrever, argumentar e expor, que configuram quatro tipos de texto: narrativo, descritivo, argumentativo e expositivo. Os estudiosos do texto fazem ainda referência ao texto injuntivo e ao conversacional. Como todo texto se enquadra num gênero, temos gêneros narrativos, descritivos, argumentativos e expositivos, como exemplificamos a seguir.


Macroação discursiva
Gêneros
NarrarFiccionais: romance, conto, novela, lenda, fábula, piada, história em quadrinhos etc. Não ficcionais: notícia, reportagem, diário, biografia, relato etc.
DescreverCardápio, lista de compras, currículo, anúncios classificados, caricatura etc.
ArgumentarArtigo de opinião, editorial, dissertação, tese etc.
ExporAula, conferência, relatório, seminário etc.

Um mesmo gênero pode se prestar à realização de macroações discursivas diferentes. Uma carta, por exemplo, pode ser usada para contar algo (carta narrativa); para defender um ponto de vista (carta argumentativa), para descrever algo ou alguém (carta descritiva), ou para transmitir um saber (carta expositiva). Num próximo post, retomarei o conceito de macroações discursivas, aprofundando-o. 

O número de gêneros do discurso, se não é infinito, é muito grande, de tal sorte que é impossível fazer uma lista fechada deles. O importante é saber que gêneros são práticas sociocomunicativas relacionadas às diversas esferas da atividade humana e, como essas são inesgotáveis, os gêneros também o são. Além disso, como as práticas sociocomunicativas são dinâmicas e se alteram, os gêneros se metamorfoseiam. Um gênero que hoje faz parte de nosso cotidiano, o blog, nada mais é que a transmutação do antigo diário pessoal. Curiosamente, aquilo que era pessoal e íntimo, tornou-se público com o advento da internet.

Assim como o blog, o mundo digital fez surgirem gêneros novos e deu cara nova a antigos: a carta pessoal metamorfoseou-se no e-mail. Com a internet, vimos aparecer gêneros que há poucos anos não existiam e que hoje fazem parte de nossas práticas cotidianas. A seguir comento um fragmento de texto da obra mencionada no início deste artigo.

Caro leitor,
Você está no limiar de minhas palavras; juntos, estamos na passagem para mudanças galácticas que vão ocorrer em poucas gerações. Estas cartas são um convite que faço para considerar um conjunto improvável de fatos referentes à leitura e ao cérebro leitor, cujas implicações vão levar a mudanças cognitivas importantes em você, na próxima geração e possivelmente na nossa espécie. Minhas cartas convidam também a olhar para outras mudanças, mais sutis, e a considerar se você se afastou sem perceber do conforto que a leitura era outrora para você. Para a maioria de nós, essas mudanças já começaram. Comecemos por um fato enganadoramente simples que tem inspirado meu trabalho sobre o cérebro leitor durante os últimos dez anos, e partamos dele: os seres humanos não nasceram para ler. A aquisição do letramento é uma das façanhas epigenéticas[1] mais importantes do Homo sapiens. Até onde sabemos, nenhuma outra espécie realizou essa façanha. O ato de ler acrescentou um circuito inteiramente novo ao repertório do nosso cérebro de hominídeos. O longo processo evolutivo de aprender a ler bem e em profundidade mudou nada menos que a estrutura das conexões desse circuito, e isso fez com que mudassem as conexões do cérebro, com a consequência de transformar a natureza do pensamento humano. O que lemos, como lemos e por que lemos são fatores de mudanças do modo como pensamos, mudanças essas que prosseguem atualmente num ritmo mais rápido. No curso de apenas seis milênios, a leitura tornou o fator catalisador de transformação do cérebro no desenvolvimento dos indivíduos e nas culturas letradas. A qualidade de nossa leitura não é somente um índice da qualidade de nosso pensamento, é o melhor meio que conhecemos para abrir novos caminhos para a evolução cerebral de nossa espécie. Há muito em jogo no desenvolvimento do cérebro leitor e nas rápidas mudanças que caracterizam atualmente sucessivas evoluções. Basta você olhar para si próprio. Provavelmente você já percebeu como a qualidade da atenção mudou à medida que lê mais e mais em telas e recursos digitais. Provavelmente, você sentiu uma sensação aflitiva de que alguma coisa sutil está faltando ao tentar mergulhar num livro de que gostou. Como um membro fantasma, você se lembra de quem era enquanto leitor, mas não consegue convocar aquele “fantasma atento” com a mesma alegria que sentia outrora, ao ser transportado de um lugar para fora de você para aquele espaço íntimo. As crianças têm ainda mais dificuldade, porque sua atenção é continuamente distraída e inundada por estímulos que não chegarão a consolidar-se em seus repositórios de conhecimentos. Isso significa que o próprio fundamento de sua capacidade para derivar analogias e inferências durante a leitura será cada vez menos desenvolvido.


Não temos a menor dúvida em reconhecer que o texto pertence ao gênero carta. O vocativo Caro leitor que abre o texto sinaliza isso. A macroação discursiva que caracteriza o texto é expor. Trata-se de texto de transmissão de saberes. O enunciador pressupõe que o enunciatário não sabe X e que levá-lo a saber X.

Não devemos confundir gênero com suporte, que é o lugar físico ou digital onde o texto fica visível ao leitor. O suporte usado por Wolf para publicar suas cartas foi um livro. Estou usando a versão física, livro impresso em papel, mas esse texto também está disponível em versão digital. A esfera discursiva, isto é, onde o texto nasce e circula, é a acadêmica. Ressalto que, ao publicar o livro por uma editora comercial, sua esfera de circulação ampliou-se além do mundo acadêmico, atingindo o público geral. A escolha do gênero carta favorece isso, na medida em que por meio delas a autora se aproxima do leitor, dialogando com ele. O livro todo é estruturado em forma de cartas. São nove ao todo.

Vários autores, desde a Antiguidade, já se valeram desse recurso para transmitir saberes aos leitores. Entre tantos, podemos citar Cartas a um jovem escritor, do escritor peruano Mario Vargas Llosa (Editora Elsevier), e Cartas a um jovem terapeuta, do psicanalista Contardo Galligaris (Editora Planeta). Em ambos, alguém que possui um saber numa determinada área (escrita de ficção e psicoterapia, respectivamente) dialoga por meio de cartas com um leitor presumido que pretende adquirir um saber que não possui de modo completo. Isso fica subtendido na palavra jovem que aparece no título de ambos os livros. Entre enunciador e enunciatário há uma relação assimétrica:  o enunciador é dotado de uma competência e de um saber que o enunciatário não tem. O uso do gênero carta é um dos fatores que possibilitam uma atenuação dessa assimetria, o que se revela um fator de persuasão do enunciador.

Como já afirmei, os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados, apresentando certa plasticidade. Isso significa que o texto de Wolf pertence ao gênero carta, mas apresenta características diferentes de uma carta familiar, de uma carta de leitor ao jornal, ou de uma carta aberta. A esfera de circulação da carta familiar é privada, ao contrário da carta ao leitor do jornal e da carta aberta, que é pública. As diferenças podem ser observadas na estrutura composicional e no conteúdo temático. Quanto à estrutura composicional, observe que a carta de Wolf não apresenta, por exemplo, local e data, o que é comum na carta familiar. Na verdade, Wolf se apropria de um gênero que originalmente serve a um propósito e o usa com outro.

O que importa saber é que a escolha do gênero se faz em função do propósito e contexto comunicativos. Decorre ainda do conteúdo temático, da esfera discursiva, de quem é o enunciatário, em que suporte será visível etc. Todos esses fatores determinam o registro a ser usado, num continuum de vai do muito informal ao muito formal.

A escolha do gênero carta por Wolf favoreceu a aproximação entre enunciador e enunciatário. O leitor tem a sensação de que a autora escreve pessoalmente para ele, o que, como sabemos, não é verdadeiro. A escolha do gênero carta cria a ilusão de exclusividade e de proximidade.

Como já destaquei neste blogue, a enunciação produz efeitos de sentido não só de aproximação e de distanciamento, como também de objetividade e de subjetividade. Como ela é pressuposta pelo enunciado, é a partir dele que se reestabelece a cena enunciativa.

Ao ler o fragmento da carta apresentada, notamos que estão esparramadas pelo enunciado as marcas linguísticas de pessoa, expressas por formas verbais e pronominais:  estamos, faço, comecemos, sabemos, lemos, pensamos, conhecemos; você, nós, minhas, meu, nosso (a) etc. Isso significa que se trata de texto enunciativo, ou seja, um texto em 1ª pessoa, cujos efeitos de sentido são os de subjetividade e de proximidade da instância da enunciação.

O pronome que abre a carta, colocado imediatamente após o vocativo Caro leitor, é você. Trata-se de pronome que se refere ao destinatário da carta (o leitor presumido), portanto um pronome referente à 2ª pessoa do discurso, embora a concordância do verbo seja feita em 3ª pessoa (“Você está no limiar…”). Se há uma 2ª pessoa instalada no texto (você), é porque há também um eu instalado no texto, como fica evidente no uso da 1ª pessoa em faço, em “…são um convite que faço…” e do pronome meu em “meu trabalho”.

Uma outra coisa que chama a atenção é o fato de a 1ª pessoa do plural (nós) prevalecer sobre a 1ª do singular (eu). Isso produz um efeito de sentido de cumplicidade, pois esse nós não é o plural de eu, mas um eu amplificado, que engloba o enunciador (eu) e o enunciatário (você, o leitor presumido). A propósito desse efeito de cumplicidade, observe quantas vezes ocorre no fragmento o pronome você. Nada menos do que nove vezes. Em síntese: é como se o enunciador estivesse conversando com o enunciatário. A escolha do gênero carta vem reforçar o efeito de sentido de diálogo.


[1] Relativo à epigenética, ramo da biologia cujo objeto é o efeito das influências e estímulos externos no desenvolvimento dos organismos.



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