Estrangeirismos

Tempo de leitura: 7 minutos

Um post que vi recentemente no Facebook chamava a atenção para o fato de que não deveríamos usar palavras estrangeiras, mas a palavra ou expressão equivalente em português. Recomendava, entre tantos outros exemplos (todos da língua inglesa), que não se deve dizer delivery, mas entrega em domicílio. Fiquei curioso em saber se a pessoa deu um clique no rato para subir o post.

Antigamente, era frequente gramáticos muito conservadores, os chamados puristas, condenarem o uso de palavras estrangeiras. Os mais radicais condenavam até mesmo o uso aportuguesado de palavras provenientes de outros idiomas. Lembro-me de professor que tive no ginásio (Ensino Fundamental II) que proibia que usássemos a palavra abajur, pois se tratava de um galicismo (abat-jour). Segundo ele, deveríamos usar a palavra quebra-luz.

Essa cruzada anti-estrangeirismos tem longa data. No século 19, o latinista Castro Lopes propunha que substituíssemos a palavra estrangeira football por ludopédio. Houve também quem propusesse trocar o estrangeirismo de origem francesa chofer por cinesíforo. Football acabou ficando, com adaptação ortográfica e cinesíforo não vingou (ainda bem!). A palavra chofer acabou encontrando um excelente substituto em motorista.

Defensores do purismo linguístico ainda existem. Lembram-se do deputado Aldo Rebelo que queria banir por decreto estrangeirismos do português? O projeto do deputado caiu no esquecimento, mas vira e mexe ressurgem com veemência protestos contra os estrangeirismos sob o argumento de que eles conspurcam o nosso idioma, a última flor do Lácio, inculta e bela.

Neste momento, estou trabalhando em home office, ouvindo um podcast sobre fake news, respondendo alguns e-mails  e escrevendo este post no meu notebook. Como veem, não sou daqueles que usam “rato” no lugar de mouse. Por necessidade, continuo fazendo os meus downloads e, para me manter atualizado, acompanho umas hashtags e usando o streaming para assistir filmes.

 As pessoas deveriam ter em mente que toda língua se transforma no tempo e no espaço. As línguas não são homogêneas, pelo contrário, são marcadas pela diversidade. O português, por exemplo, não é um só. Ele comporta um feixe de variedades. Uma das formas pelas quais as línguas se transformam é pelo contato com outras línguas. Importamos, na forma original, ou aportuguesada, palavras de outros idiomas. São os chamados estrangeirismos. Houve época em que era chic entre nós importar palavras do francês, considerada língua de cultura. Isso justifica a presença de palavras largamente usadas como menu, garçom, toalete, gafe, cachecol, champanha, suvenir, avenida, bulevar…

Hoje, a maioria das palavras estrangeiras usadas em nosso idioma provém do inglês, uma espécie de língua universal. Mas como bem salientou a professora Ieda Maria Alves, do departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, não importamos palavras estrangeiras, mas cultura estrangeira. Quando importamos dos ingleses o jogo chamado futebol, junto com ele veio toda a terminologia. Não importamos as palavras gol e pênalti, importamos o jogo. As palavras vieram juntas. Vejam esta notícia de um jornal paulista de 1922.

 CORINTHIANS 2 a 1. 20 de fevereiro de 1922. Ontem, o bravo team do Corinthians Paulista derrotou pelo score de 2 a 1 o do Palestra Itália, no ground deste último. Goals do forward Neco (2) e do full-back Baggio. No ponto do bonds, após o match, um torcedor do Palestra, inconformado, apunhalou um corinthiano.

 Com o tempo, algumas dessas palavras foram deixadas de lado, substituídas ou aportuguesadas: team virou time, score virou placar, ground virou campo, forward virou atacante, full-back virou zagueiro, bonds, virou bonde (se é que ainda existem bondes),  match virou partida. Sem falar de outras palavras que não aparecem na notícia como offside, que virou impedimento, e corner, que virou escanteio.

 A professora Ieda cita exemplos bastante atuais: black fridaydelivery e halloween. O que nós importamos dos americanos foi a cultura de “promoções” que anunciam descontos enormes, o sistema de entregar coisas em domicílio, a comemoração do dia das bruxas. As palavras simplesmente acompanharam as importações.

Será que na língua inglesa há estrangeirismos de origem portuguesa? Pode até ser que haja um ou outro. Por que não há uma profusão de estrangeirismos de origem portuguesa no inglês? Simplesmente porque, ao contrário de nós, eles não importam nossa cultura.

 A respeito do uso de palavras estrangeiras, me vem à lembrança um autor que era leitura obrigatória nos meus tempos de faculdade, Roman Jakobson. Para o linguista russo, usar a palavra estrangeira é uma opção que sinaliza intenção de deixar explícita a conexão com a cultura estrangeira.

Não são apenas linguistas que se debruçam sobre a questão do uso de palavras estrangeiras. Não é raro que escritores se posicionem sobre o assunto. Um dos trechos mais interessantes que li sobre estrangeirismos e purismo linguístico aparece numa obra de Amós Oz (1939 – 2018).

Em seu livro De amor e trevas, que tem caráter autobiográfico, o escritor israelense conta que uma das pessoas que exerceram grande influência sobre ele foi seu tio-avô Yossef Klausner, um intelectual, professor de literatura, grande conhecedor de línguas. Klausner foi também o redator-chefe da Enciclopédia Hebraica. Destacou-se ainda pela sua atuação política e chegou a disputar o cargo de presidente na primeira eleição presidencial israelense em 1949.

 Amós Oz, desde criança, frequentava a casa do tio, ponto de encontro de intelectuais e sionistas, onde presenciou discussões acaloradas, muitas delas relatadas em De amor e trevas.

Yossef era um estudioso de línguas, dominava cerca de 15, entre elas, o aramaico, o árabe, o sânscrito, o persa, o grego e o latim. Aos 19 anos publicou seu primeiro artigo, Novas palavras e ortografia, em que convidava os leitores a ampliar a língua hebraica pela importação de palavras estrangeiras.

Numa discussão sobre o renascimento do hebraico e purismo linguístico em sua casa, Yossef, defendendo a importação de palavras estrangeiras para o renascimento do hebraico, ouve de Eliezer Ben Yehuda as seguintes palavras que afiançam as ideias de Yossef:

“… sabemos muito bem que o segredo da sobrevivência dos idiomas reside na sua disponibilidade para absorver palavras e conceitos de onde quer que venham, para os digerir, assimilar e integrar ao idioma que os absorveu, passando então a obedecer à sua lógica e à sua morfologia. Mas os puristas de todos os tipos, com sua visão estreita, ofendem-se e logo pulam para defender nossa língua de termos estrangeiros, sem se dar conta, ou sem lembrar quanto nosso idioma recebeu, desde o início, de palavras vindas de no mínimo seis outros idiomas, e não me consta que tenham vindo para destruí-lo, pelo contrário, elas fazem parte dos fundamentos de toda língua viva, especialmente de nossa língua renascida”.

 Vou parar por aqui e dar uma saída. Vou almoçar num self-service lá do shopping. Enjoei de pedir pizza pelo delivery, usando meu smathphone. Tchau! Ou devo dizer Bye?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.