Ultracorreção

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No artigo, chamo a atenção para um fato linguístico não raro. Muitos falantes, ao tentarem adequar sua fala aos moldes de uma norma prestigiada socialmente, fugindo da norma popular, que consideram feia e errada, acabam aplicando regras gramaticais de forma excessiva, “corrigindo” formas linguísticas em que não há nenhum erro.

A ultracorreção decorre de alguns fatores, entre os quais se destacam: a insegurança de quem fala ou escrever e a vontade de falar de forma elegante e educada. Para isso, cria uma regra que não existe. Trata-se de algo mais comum do que se imagina e ocorre na pronúncia e na sintaxe. Quando uma pessoa pronuncia brica em vez de rubrica, por achar que essa última é errada, comete ultracorreção.

A ultracorreção não se dá apenas língua falada. Ela ocorre também na língua escrita. Quem, por ultracorreção, pronuncia RÚbrica em vez de rubrica, fatalmente vai escrever rubrica com acento gráfico no U. Em  decorrência da ultracorreção, há pessoas que falam e escrevem prazeiroso, bandeija e carangueijo. É fácil explicar por que elas “erram” ao tentar acertar.

Esses falantes consideram “erradas” e feias pronúncias como pexe, froxo, caxa, comuns na fala popular. Nelas, se transformam os ditongos orais ei, ou, ai em um só fonema vocálico, e, o e a, respectivamente. A esse fenômeno, dá-se o nome de monotongação.

Como consideram “erradas” aquelas formas, fazem a “correção” em palavras em que não é necessário fazer, dizendo prazeiroso, bandeija e carangueijo, em vez de prazeroso, bandeja e caranguejo.

Curiosamente, pessoas que condenam as pronúncias pexe  e caxa cometem exatamente o mesmo “erro” quando dizem mantegueira e cabelereiro, no lugar de manteigueira e cabeleireiro, por um processo de monotongação. Alguns falantes reduzem até mesmo os dois ditongos, ao dizerem manteguera e cabelerero.

Usamos aspas em erradas (Como consideram “erradas” aquelas formas…), para chamar a atenção para o fato de que esse “erro” só causa estranheza quando aparece na escrita; pois, na língua falada, pronúncias como ropa, poco, loco são comuns, mesmo por parte de pessoas com elevado grau de escolarização.

Veja que, no conhecido samba Com que roupa, de 1929, Noel Rosa rima roupa com sopa, popa e estopa.

“Pois  esta vida não está sopa

E eu pergunto: com que roupa?”

“Eu já corri de vento em popa

Mas agora com que roupa?”

“Meu terno já virou estopa

E eu nem sei mais com que roupa”

A ultracorreção ajuda explicar construções como “fazem muitos dias” e “haviam pessoas”. Nesses exemplos, o falante, tentando acertar, pluraliza o verbo em desacordo com o que estabelecem as gramáticas normativas, que preconizam as formas “faz muitos dias” e “havia pessoas”. 

Até mesmo pessoas que conhecem as regras da norma-padrão, na tentativa de fazer com que seu texto não tenha erro algum, às vezes, cometem ultracorreção.

Lendo o livro Os vulneráveis, de Sigrid Nunez, encontrei, na tradução para o português, a seguinte frase:

“Mas o que me lembro é de como me impressionou mais tarde, bem mais tarde, a leitura do poema em prosa de Baudelaire, O desespero da velha”.

Trata-se de exemplo de ultracorreção sofisticada. A norma-padrão prescreve que com o verbo lembrar (e esquecer), quando pronominal, exige complemento com regido pela preposição de. Quem redigiu fez questão de colocar a preposição de para ficar de acordo com a norma-padrão.

No entanto, colocou a preposição não antes do termo regido por ela (o complemento objeto indireto), mas antes do termo que funciona como predicativo (como me impressionou mais tarde…).

O lugar da preposição é antes do pronome que, que funciona como objeto indireto de ‘me lembrar’, ou seja, a construção que seria adequada ao que prescreve a norma-padrão é:

“Mas o de que me lembro é como me impressionou mais tarde, bem mais tarde, a leitura do poema rem prosa de Baudelaire, O desespero da velha”. 

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