Aspecto verbal

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No artigo, trato de aspecto verbal, uma categoria pouco estudada na escola. É comum a escola e os materiais didáticos apresentarem as conjugações verbais em todos os tempos e modos, mas pouco comentar sobre a diferença entre o pretérito perfeito e o imperfeito e entre o pretérito perfeito simples e o pretérito perfeito composto, só para citar dois exemplos. Qual a diferença entre cantei e tenho cantado? Ambas formas verbais estão no pretérito perfeito do indicativo, mas não exprimem a mesma coisa.

Ressalto que as noções de tempo e aspecto estão interligadas. Embora o aspecto normalmente seja expresso pelo tempo verbal, essas noções não devem ser confundidas. Aspecto tem relação com o tempo interno da ação, do estado, do processo, do evento expressos pelo verbo e não com a sua ocorrência no tempo (passado, presente ou futuro). Há casos em que a forma verbal não exprime tempo, mas apresenta aspecto, como é o caso do gerúndio, que não indica tempo (passado, presente e futuro), mas revela o processo em sua duração, uma ação que se prolonga no tempo, apresentada como não concluída. O tempo é uma categoria dêitica, isto é, está ligado ao momento em que se fala, organizando-se em anterioridade (passado) e posterioridade (futuro) a esse momento, que denominamos presente. O aspecto não é categoria dêitica, ou seja, não está atrelado ao momento da fala.

O tema é complexo também porque, quanto ao aspecto, ao contrário do tempo, a nomenclatura usada pelos estudiosos não é uniforme. O que alguns estudiosos chamam de aspecto inceptivo, outros chamam de incoativo. Acrescento ainda que, o aspecto, ao contrário do tempo, não é marcado por flexão. Aspecto tem a ver principalmente com aspectos semânticos.

A seguir, tento apresentar de forma didática a noção de aspecto, partindo dos valores, assinalando algumas formas, particularmente as verbais os expressam.

O verbo

O verbo, além de situar o fato verbal num determinado tempo (passado, presente ou futuro), pode apresentá-lo como concluído (aspecto perfectivo) ou não. Ao apresentá-lo como não concluído (aspecto imperfectivo), pode mostrá-lo como algo em curso, ou em seu início, ou em seu término. Tratarei desses aspectos adiante.

A noção de aspecto pode ser percebida com facilidade quando comparamos enunciados com a presença dos verbos ser e estar.

Gabriela é insegura. Gabriela está insegura.

A diferença entre essas duas frases reside na oposição /permanente vs. temporário/.

Com o verbo ser, exprime-se um predicado permanente do sujeito. A extensão temporal é maior; com o verbo estar exprime-se um predicado temporário, transitório. A extensão temporal é menor. A diferença entre é insegura e está insegura não reside na categoria tempo (ambas as formas verbais estão no presente), mas no ponto de vista pelo qual o estado é percebido. Com o verbo ser, a duração se estende no tempo; com o verbo estar, ela se encurta. Um dado importante: em diversas línguas, ao contrário do português, essa distinção entre estado permanente e temporário não é marcada formalmente, ou seja, uma mesma forma como os verbos to be, em inglês e être, em francês, é usada para exprimir estado permanente ou temporário.

As frases Gabriela chegou e Patrícia acabou de chegar exprimem fatos concluídos no passado (aspecto perfectivo). No entanto, em acabou de chegar, situa-se o fato verbal expresso pelo verbo num momento anterior bastante próximo do presente; em chegou, no entanto, não é possível localizar em que momento do passado o fato verbal ocorreu. Para indicar o momento do passado em que Gabriela chegou, recorre-se a adjunto ou oração adverbial: Gabriela chegou ontem / às seis horas / na semana passada / quando você saiu etc.

A seguir, apresento uma definição bastante simples de aspecto.

Aspecto é uma categoria linguística pela qual se expressa o ponto de vista sobre o fato verbal, se concluído ou não concluído, bem como na sua temporalidade interna.
A oposição concluso vs. não concluso

Quanto à oposição concluso vs. não concluso, o processo verbal pode ser visto em sua totalidade, como algo acabado, concluído, com começo e fim [aspecto perfectivo], ou visto como incompleto, não acabado, normalmente apresentado em uma de suas partes, começo, meio ou fim, [aspecto imperfectivo].

O aspecto perfectivo, como o próprio nome indica, é expresso principalmente pelas formas verbais do pretérito perfeito simples do indicativo e do pretérito mais-que-perfeito do indicativo (simples ou composto). O aspecto imperfectivo é expresso principalmente pelo presente do indicativo, pelo pretérito imperfeito do indicativo e pelo pretérito perfeito composto do indicativo.

Numa frase como Gabriela viajou para a Europa e, enquanto viajava, postou várias fotos no Instagram. O verbo viajar aparece duas vezes. Na primeira ocorrência, exprime fato concluído, completo (aspecto perfectivo); na segunda, o ato de viajar não é apresentado como concluído e completo (aspecto imperfectivo). O fato concluído é expresso pelo uso do pretérito perfeito do indicativo; o não concluído, pelo pretérito imperfeito do indicativo. Tanto viajou quanto viajava expressam fatos anteriores ao momento da fala (passado). A diferença entre viajou e viajava não reside no tempo mas no aspecto. Outros exemplos.

Ele recebeu o prêmio. ( pret. perf. – aspecto perfectivo)

tinha lido a notícia, quando você me falou dela.  (pret. mais-que-perfeito composto – aspecto perfectivo)

Neste momento, assisto à aula. (pres. do ind. – aspecto imperfectivo)

Ele recebia o salário mensalmente. (pret. imperf. do ind. – aspecto imperfectivo)

Ele tem trabalhado com entusiasmo. (pret. perf. composto do ind. – aspecto imperfectivo)

Temporalidade interna. A oposição duração vs. pontualidade

Quando afirmei que o aspecto expressa também a temporalidade interna do fato verbal, estava me referindo à duração do fato, isto é, do lapso de tempo entre seu início e seu final. Por oposição à duração, temos a pontualidade que corresponde à ausência ou quase ausência de duração, vale dizer, o início do fato verbal corresponde ao seu final. A duração pode ser representada por uma linha reta; a pontualidade por um ponto.

Quanto à duração, o processo pode ser observado em suas fases, ou seja, em seu início ou próximo dele, em seu desenvolvimento, ou em seu término ou próximo do fim, correspondendo, respectivamente, aos aspectos inceptivo, cursivo e terminativo.

Gabriela começou a cantar. (aspecto inceptivo)

Gabriela está cantando. (aspecto cursivo)

Gabriela acabou de cantar. (aspecto terminativo)

Alguns autores chamam de aspecto incoativo o que aqui chamo de aspecto inceptivo, particularmente quando o verbo indica mudança de estado como em O menino adoeceu.

Sob o ponto de vista da duração, o processo pode ser visto como contínuo ou descontínuo. No primeiro caso, temos o aspecto durativo; no segundo, o aspecto iterativo.

Ele está cantando. (aspecto durativo, processo visto como contínuo)
O pássaro saltita no poleiro. (aspecto iterativo, processo visto como descontínuo).

A categoria aspecto, ao contrário do que ocorre com as categorias tempo e modo, não é marcada  por desinências. A aspectualização pode ser expressa por:

· formas verbais do indicativo: pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito etc.;

· formas nominais do verbo: o gerúndio (aspecto imperfectivo e cursivo), o particípio (aspecto perfectivo). O infinitivo é aspectualmente neutro.

 · perífrases verbais (verbo auxiliar + verbo principal): acabou de chegar, começou a falar, continua lendo etc.

· sufixos: saltitar, bebericar, gotejar (iterativos), amanhecer, adoecer (inceptivo / incoativo) etc.;

 · item lexical (adjunto adverbial, por exemplo): passeia diariamenteneste exato momento, pediu a palavra, reclamou várias vezes. 

Não se deve confundir aspecto com modalidade. Em frases, como É possível que ele volte e Volte logo, as formas verbais destacadas não exprimem aspecto, mas modalidade (modo subjuntivo e imperativo). Ressalto ainda que muitos verbos já trazem em seu radical a noção de aspecto. Verbos como persistir, escorrer, perdurar já contêm em si a ideia de duração. Verbos como cair, quebrar, tropeçar já contêm em si a ideia de pontualidade. Em verbos como repetir, refazer e insistir já está presente a ideia de repetição.

É importante observar que um mesmo tempo verbal apresentará um aspecto quando usado na forma simples e outro na forma composta. É ocorre, por exemplo, com as formas simples e compostas do pretérito perfeito do indicativo e do futuro do pretérito do indicativo, como se observa nas frases a seguir.

Patrícia levou o filho à escola. (pret. perf. simples: perfectivo, ação vista como acabada)

Patrícia tem levado o filho à escola. (pret. perf. composto: imperfectivo, ação habitual)

Patrícia compareceria à reunião. (fut. do pret. simples: imperfectivo)

Patrícia teria comparecido à reunião. (fut. do pret. composto: perfectivo, ação vista como concluída)

Há frases que não apresentam aspectualização. Alguns autores se referem a aspecto indeterminado para designar frases em que o verbo tem valor atemporal ou onitemporal. Isso ocorre, por exemplo, com frases que expressam verdades científicas e ditados populares.

Por um ponto passam infinitas retas.

A Terra é redonda.

O papagaio é uma ave.

Um ano tem doze meses.

Nem tudo que reluz é ouro.

Destaco que o que se falou aqui não tem a mínima pretensão de esgotar o assunto, que é muito amplo. A recomendação que faço é que, a partir das considerações aqui apresentadas, se verifique a aspectualização em cada frase concreta em particular.

Para encerrar os comentários sobre aspecto verbal e tentar quebrar um pouco a aridez do tema, transcrevo uma passagem do conto “O homem cadente”, que faz parte do livro O fio das miçangas, de Mia Couto.

Quando me vieram chamar, nem acreditei:

– É Zuzézinho! Está caindo do prédio.

E as gentes, em volta, se depressavam para o sucedido. Me juntei às correrias, a pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu.

O narrador estranha o emprego de cair com temporalidade interna de valor cursivo indicando processo em seu desenvolvimento (“está caindo“); pois, na visão dele, cair exprime ação pontual (“quem cai, já caiu“).


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