A crônica

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No artigo, trato de um gênero que transita entre o literário e o não literário: a crônica, gênero que circula em diversos suportes, sejam impressos como jornais, revistas e livros, sejam  digitais, como blogues e fanpages.

A crônica é excelente modelo para a produção de textos pessoais, independentemente da esfera em que circulem, sejam eles narrativos, expositivos ou argumentativos. Ler crônicas é uma excelente prática para desenvolver a habilidade de produzir textos em que limites são impostos, tais como prazo curto para aprontar o texto, extensão pré-determinada e atualidade do tema. O fato de a crônica ser um gênero costumeiramente veiculado na imprensa obriga o cronista a aprontar seu texto rapidamente e escrevê-lo nos limites de espaço, não muito extenso e, em consequência, demandando concisão, que é uma qualidade dos textos em geral.

São inúmeras as situações em que se tem de produzir um texto dentro de um limite estabelecido de páginas ou de caracteres, como nas redações de exames ou concursos e na produção de artigos, sejam da esfera jornalística, sejam da esfera acadêmica.

A palavra crônica, segundo o Dicionário Houaiss, procede do latim chronica, cujo sentido é “relato de fatos em ordem temporal, narração de histórias que se sucedem no tempo segundo uma ordem”, sentido que até hoje se mantém em português.

Crônica prende-se ao radical grego kronos, que significa tempo, e que aparece em inúmeras palavras da língua portuguesa, como cronologia, cronômetro, cronógrafo, sincronia, anacrônico, etc., todas pertencentes ao campo lexical de tempo. O substantivo crônica aponta a principal característica do gênero: um texto cuja matéria é o tempo, por isso nela pode-se falar de tudo, porque tudo o que ocorre acontece no tempo.

O tempo da crônica é aquele vivido ou revivido pelo cronista, aquele a que Drummond se refere nos versos finais de seu poema Mãos dadas, “O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.

A crônica é frequentemente um texto pessoal, em que o cronista recria a realidade cotidiana, em geral com leveza, com seu estilo particular, sem a preocupação de ser fiel à realidade.

Crônica e conto

Dada sua curta extensão, a crônica costuma ser confundida com o conto, particularmente quando é narrativa. Em geral, ela se distingue do conto pelas seguintes características:

  1. o suporte: a esfera de circulação da crônica é o discurso jornalístico; seus leitores, em princípio, são os mesmos que leem notícias. Embora possam ser publicadas em livros, em geral circulam primeiro em jornais. Por ser um gênero de curta extensão, tratando de temas da atualidade com leveza, é largamente utilizada em situações de ensino e aprendizagem, por isso são muito lidas na escola, exercendo importante papel na formação de leitores e produtores de texto. É comum livros apresentarem uma coletânea de crônicas publicadas anteriormente em jornais. Cronistas encontraram na internet um bom lugar para publicarem seus textos, sobretudo em blogues.
  2. grau de aprofundamento: a crônica não tem o mesmo grau de aprofundamento do conto, que apresenta uma elaboração maior dos elementos da narrativa, tempo, espaço e personagem.
  3. o narrador: na crônica, ele costuma ser a própria pessoa do cronista, ao passo que no conto ele delega a função de narrar a um ser ficcional, que pode ser uma personagem da história ou um observador.

O trecho a seguir, início da última crônica de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal do Brasil, em 29 de setembro de 1984, na qual ele se despede dos leitores do jornal e do próprio gênero crônica, ilustra que aquele que fala na crônica (o narrador) é o próprio autor e não um ser ficcional criado por ele.

 Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:

― Sobre o que pretende escrever?

― Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.
O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.

disponível em <http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond38.htm>, acesso em 13-set-2021

Embora redigida em terceira pessoa, o narrador é o próprio autor, que relata sua trajetória de cronista iniciada há 64 anos, fazendo um breve balanço do que de essencial presenciou e relatou como cronista durante esse tempo, para em seguida despedir-se dos leitores que liam suas crônicas no jornal. Embora não se trate de texto ficcional, ao optar por uma narração em terceira pessoa, o cronista obtém um efeito de sentido diferente do que obteria se sua despedida fosse narrada em primeira pessoa. Ao narrar em terceira pessoa, o autor não fala propriamente de si como pessoa, mas da função social que exerce, cronista, dizendo a seus leitores que não é a pessoa, ou o autor Carlos Drummond de Andrade quem está se despedindo dos leitores, mas apenas o cronista Drummond.

O fato de a crônica ser publicada em veículos de comunicação de massa fez com que alguns críticos a rotulassem como gênero literário menor, não lhe atribuindo o mesmo status de gêneros considerados mais nobres, como o conto e o romance. Isso não procede. O valor da obra não pode ser medido com base no meio em que foi publicada. Muitos romances excelentes foram inicialmente publicados em jornais, em capítulos, acompanhados avidamente pelos leitores.

Há romances e contos publicados em livro que não possuem valor literário e crônicas publicadas em jornais e na internet que possuem alto valor literário. Grandes autores de contos e romances também cultivaram o gênero crônica, como Machado de Assis, Eça de Queirós, Carlos Drummond de Andrade.

A crônica pode tratar de qualquer assunto, desde os mais leves até os graves. Drummond afirma que o assunto da crônica “Pode ser um pé de chinelo, uma pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz da lavanderia. Pode ser tanta coisa!”.[1]

Ainda segundo Drummond, ao cronista é permitido abordar diversos assuntos sem que seja necessário ser especialista em nenhum deles, mas faz uma restrição: o cronista não deve ser faccioso, ou seja, não deve servir a interesses pessoais ou de grupos.

Texto comentado

Apresento a seguir uma crônica de Lima Barreto, publicada em 19 de janeiro de 1915. Nela, o cronista fala de um problema que, mesmo passado mais de um século, ainda persiste.

As enchentes

As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro, inundações desastrosas.

Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis.

De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão simples problema.

O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares[2], dos freios elétricos, não pode estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.

Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha!

Não sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema não é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais, procrastinando a solução da questão.

O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.

Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundações.

Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Vida urbana, 19-1-1915. Domínio público.

Chamo a atenção para como Lima Barreto trabalhou com maestria as características do gênero crônica. Primeiro: escolheu um tema atual, as chuvas que naquele momento assolavam o Rio de Janeiro e os problemas decorrentes dela. Além de atual, trata-se de tema de interesse dos leitores. As complicações no tráfego, as interrupções nas comunicações, perdas e destruição de imóveis afetam a vida de todos.

Embora trate de um problema de natureza grave, o cronista faz isso com leveza, mas sem abrir mão de uma postura crítica, apontando responsáveis. As chuvaradas de verão são um fenômeno natural, por isso não há como impedi-las, no entanto, para o cronista, os problemas decorrentes delas poderiam ser evitados. Não é por falta de conhecimento técnico que não se resolve, “o problema não é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais”, mas por falta de vontade política, “O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio”.

Do ponto de vista da organização textual, isto é, de como essas ideias são transmitidas ao leitor, dois recursos usados pelo cronista contribuem para o fazer comunicativo (fazer-saber) e o fazer persuasivo (fazer-crer).

O primeiro é a concisão: texto objetivo, direto, atendo-se ao essencial. Uma estratégia usada por cronistas e autores de gêneros ficcionais é  não passar ao leitor todas as informações num único bloco; ao contrário, costumam segmentar o texto em blocos de informação. Observe como o Lima Barreto organizou o texto em parágrafos curtos, favorecendo a retenção das ideias.          

A persuasão decorre do fato de que, embora escrita em primeira pessoa, o cronista se coloca como cidadão, identificando-se com o leitor. Como ele consegue isso? Por um truque simples: mudando a primeira pessoa do singular (eu) para a primeira do plural (nós), como você pode observar nos trechos “… causam no nosso Rio de Janeiro…”,  “… nos preocupamos muito com os aspectos externos…”, “… nos preocupamos muito com os aspectos externos…”.

O uso da primeira pessoa do plural no último parágrafo, que serve de conclusão ao texto, chama a atenção para o fato de que o descuido com a cidade não é exclusividade dos governantes. Os governados têm também sua parcela de responsabilidade. 

Mais de cem anos passados e a crônica continua atual.


[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Boca do luar. Rio de Janeiro: Record, 2009.

[2] Praça, em inglês.

Em meu livro Da leitura literária à produção, publicado pela Editora Contexto, trato de como a leitura de gêneros como a crônica, o conto e o romance indica caminhos fornece subsídios para a formação de competentes leitores e produtores de textos próprios.

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