A gramática

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A gramática é um meio baseado, por excelência, sobre o pensamento abstrato, o meio mais estável e mais válido, ao mesmo tempo de realizar a adaptação ao contexto, de tornar compreensíveis as palavras, através de seu inter-relacionamento, vinculando-as a toda a situação. (Tatiana Slama-Cazacu)
O CONCEITO DE GRAMÁTICA

Se perguntarmos a qualquer pessoa o que é gramática, com certeza vamos ouvir alguma resposta do tipo: gramática é um conjunto de regras para se falar e escrever corretamente. As palavras podem variar de pessoa para pessoa, porém o conceito básico será quase sempre esse.

O conceito de gramática como um conjunto de regras a serem seguidas pelos falantes de uma língua é o mais conhecido das pessoas em geral, por- que é o mais difundido. A escola é a principal responsável por sua difusão. Acrescento que grande parte da mídia abraçou esse conceito, pois é frequente observarmos na imprensa pessoas que não têm qualquer formação em linguística se colocarem como guardiões do idioma, condenando usos que se afastam daquilo que postulam as gramáticas tradicionais.

Desde que entramos na escola, aprendemos, nas aulas de gramática, um conjunto de regras a serem seguidas no uso da língua. Além de aprendermos a classificar palavras, orações e fonemas, nessas aulas insiste-se em transmitir uma série de regras (“nunca se iniciam frases por pronome oblíquo átono”; “o verbo concorda com seu sujeito”; “o verbo ‘haver’ no sentido de ‘existir’ não se flexiona em número e pessoa”; “todas as palavras proparoxítonas são acentuadas graficamente”; “nos adjetivos compostos, só o último elemento varia”; “nos substantivos compostos cujos elementos estão ligados por preposição, só o primeiro elemento se flexiona” etc.). Persiste-se principalmente no que se pode e no que não se pode dizer, no que é “correto”, no que é “errado”. Em resumo: privilegia-se o ensino da gramática normativa e pouco espaço se dá à discussão das variedades linguísticas.

O conceito de gramática como algo normativo está tão arraigado nas pessoas que, quando se referem à gramática normativa, já nem usam o adjetivo normativa; dizem simplesmente “Vou ter aula de gramática” ou “Vou comprar uma gramática”, por suporem que toda gramática é norma- tiva.

No Dicionário Houaiss, a primeira acepção de gramática é justamente esta:

“conjunto de prescrições e regras que determinam o uso considerado correto da língua escrita e falada”.

Se formos buscar, no entanto, outras acepções para o termo “gramática”, encontraremos, por exemplo, a seguinte:

gramática [Do gr. grammatiké (subentende-se techne), “arte da gramática”, pelo lat. grammatica.]

S. f. Estudo ou tratado dos fatos da linguagem, falada e escrita, e das leis naturais que a regulam. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico)

Se atentarmos para essa definição, verificaremos que a palavra “gramática” possui um sentido mais amplo do que aquele que costumamos atribuir-lhe.

A gramática é o estudo dos fatos da linguagem e das leis naturais que a re- gulam. Chamo a atenção para o adjetivo “naturais” presente na definição citada. Será que as leis (regras) estabelecidas pela gramática normativa são naturais? Claro que não. A norma gramatical não é intrínseca à língua; portanto não é natural. A norma é ditada de fora para dentro. Dentre uma variedade de usos, é um que ser quer impor, de cima para baixo, aos demais.

Num sentido amplo, a gramática deveria se preocupar com as leis naturais que regulam a língua, ou seja, com aquelas regras intrínsecas que permitem aos falantes usá-la com finalidade comunicativa. Essas leis naturais não são aprendidas na escola: todo falante de uma língua já as conhece desde tenra idade, embora não saiba explicitá-las. São essas leis naturais (regras intrínsecas) que nos permitem construir e compreender os enunciados. A escola deve, pois, explorar o conhecimento que os alunos já têm dessas regras intrínsecas para desenvolver sua capacidade expressiva.

A gramática normativa pressupõe que há uma única forma correta de utilização da língua, segundo padrões preestabelecidos pela linguagem escrita, impondo um modelo de linguagem que é o de uma determinada classe social − coincidentemente, a classe dominante, ou seja, aqueles que dominam os setores econômicos acabam impondo aos demais um modelo de língua, que se convencionou chamar de padrão.

A gramática normativa, ao padronizar a língua, espera que todos os falantes a utilizem como ela prescreve: daí estar sempre valorizando o “acerto” (aquilo que está de acordo com a norma-padrão) e repudiando o “erro” (aquilo que se desvia da norma-padrão). Em decorrência disso, o uso que se faz da língua acaba rotulando as pessoas. Aqueles que utilizam a língua como estabelece a norma-padrão são considerados pessoas cultas; aqueles que, por não terem o domínio da norma-padrão, utilizam a língua na variedade do seu meio e/ou classe social, são estigmatizados, chamados de incultos, de ignorantes, de analfabetos.

A origem desse tipo de gramática é muito antiga. Ela surgiu inicialmente na Índia, em decorrência da necessidade de se preservarem os textos sagra- dos. Como esses textos podiam ser alterados pelos escribas, impuseram-se regras que deveriam ser seguidas por quem os copiasse.

Na Antiguidade Clássica, as gramáticas escritas pelos filósofos gregos tinham, além da preocupação de explicar a língua, também o desejo de preservar a língua grega da corrupção por parte das pessoas não cultas.

As gramáticas utilizadas com fins didáticos contêm seguidamente expressões artificiais, forjadas mais conforme as normas do que pelo critério da frequência no dia a dia. Na comunicação, existem muitas construções ditas “elípticas” (no fundo, completas), que fazem apelo ao contexto situacional, onde as palavras são substituídas pelos gestos, ou por correlatos situacionais, mas muito bem entendidas pelo receptor que conhece o sistema de referência. A tendência em fazer impor construções artificiais, que os falantes de hábito não utilizam, provém de um certo desprezo pelas situações práticas da comunicação. (Tatiana Slama-Cazacu)

Em sentido estrito, além da gramática normativa, podemos observar outros tipos de gramática. Menciono alguns.

Gramática internalizada

Todo falante possui uma gramática que interioriza desde tenra idade, a partir de suas próprias experiências linguísticas. Da observação das regularidades existentes na língua, o falante vai construindo sua própria gramática. O conhecimento da gramática internalizada é, portanto, independente da escolarização.

A gramática internalizada é muito pouco explorada na escola, que privilegia o ensino da gramática normativa, desprezando o conhecimento prévio que o aluno tem das regras gramaticais intrínsecas de sua língua. Esquecendo-se desse fato, o ensino da língua acaba se revelando, muitas vezes, antieconômico, já que se insiste em ensinar ao aluno muitas coisas já sabidas.

No mais das vezes, o que a escola ensina não é a língua, seus usos e seu funcionamento, mas a nomenclatura gramatical. As aulas de língua portuguesa costumam se caracterizar por ensinar o nome das coisas: aprendemos que tais palavras se chamam substantivos; outras, adjetivos; outras, advérbios etc., deixando de lado um aspecto mais importante, que é o uso.

A escola privilegia, sobretudo, a língua escrita por considerá-la uma manifestação da linguagem humana superior à fala. Claro que a importância da escrita é fundamental, pois muito do conhecimento nos é apresentado sob essa forma de linguagem. É por meio da escrita que chegamos ao conhecimento de outros ramos do saber, mas o trabalho com a língua falada não pode ser deixado de lado, pois a maioria dos nossos atos de comunicação se dá pela língua falada.

Cremos que, no ensino da língua, a escola deveria estimular a ativação dessa gramática internalizada, promovendo, dessa forma, o amadurecimento linguístico do estudante, por meio de exercícios de realização verbal oral e escrita, pelos quais ficasse claro quais dessas manifestações são aceitas pela comunidade linguística e em que circunstâncias.

Gramática descritiva

A gramática descritiva procura apresentar as línguas como são usadas pelos falantes. Essa gramática não prescreve regras que determinam o que é “certo” ou “errado”, e sim procura verificar as uniformidades ou diferenças existentes entre os diversos registros de uma língua. Ao dizer que no português brasileiro os falantes têm a tendência de usar o pronome oblíquo átono antes do verbo, mesmo que este venha no início da frase, a gramática descritiva está explicitando uma regra que os falantes efetivamente seguem. A gramática normativa, ao contrário da descritiva, não explicita as regras que os falantes seguem, mas as que devem seguir.

Gramática gerativa

A noção de gramática gerativa foi criada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky na década de 1950 e procura explicar os fatos linguísticos como são engendrados, visando estabelecer um modelo geral, baseado em princípios universais, do qual derivam as gramáticas de cada língua em particular.

Gramática funcional

A gramática funcional, também chamada de gramática sistêmico-funcional, vê a língua como um sistema de significados que são realizados por formas linguísticas. Esse tipo de gramática coloca a seguinte questão: “Como os significados são expressos?”. Para a gramática funcional, as formas linguís- ticas não são um fim em si mesmo, mas um meio para se atingir um fim. Segundo Maria Helena de Moura Neves, a gramática funcional considera “a capacidade que os indivíduos têm não apenas de codificar e de decodificar expressões, mas também de usar e interpretar essas expressões de uma maneira interacionalmente satisfatória”.

Gramática textual

A gramática gerativa e, posteriormente, um tipo particular dessa gramática, a gramática transformacional, também chamada gerativa transformacional, serviu de base para o surgimento das gramáticas textuais. Se é possível estabelecer as regras que permitem criar frases portadoras de sentido, se- ria possível também criar uma gramática que explicitasse as regras para a criação de textos bem formados. As gramáticas de texto, analogamente à gramática gerativa de frases, vão procurar explicitar as regras que permitem aos falantes produzir textos bem formados.

Em linhas gerais, as gramáticas textuais surgiram para sanar uma lacuna das gramáticas da frase, que não conseguiam explicar fenômenos como a pronominalização, a correferência, a seleção dos artigos, a relação tema/ rema etc. Como o próprio nome indica, o texto é o objeto de estudo das gramáticas textuais. Parte-se dele para se chegar, por meio da segmentação, às unidades menores.

As gramáticas textuais serviram de base para o aparecimento de um novo ramo da linguística − a linguística textual − nos anos 1960, que mostra que o texto é algo mais que uma sequência de frases. É a partir da linguística textual que conceitos como coesão, coerência, intencionalidade e intertex- tualidade passam a ser objeto de preocupação dos estudiosos da linguagem, na medida em que são constitutivos do texto.

O que caracteriza a linguística textual não é propriamente a metodologia que ela emprega, mas seu objeto de estudo: o texto, entendido como manifestação linguística do discurso.


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