Leitura de notícias na escola

Tempo de leitura: 11 minutos

É assumido como pressuposto que as atividades de leitura no âmbito da escola devem contemplar a diversidade dos gêneros. Não há, no entanto, como negar que determinados gêneros acabam tendo prevalência sobre outros em situações de ensino e aprendizagem. A escola pode até deixar de lado o trabalho com gêneros como receita médica, ata de condomínio, escritura pública, uma vez que, dada a diversidade dos gêneros, jamais conseguirá contemplar todos, mas raramente poderá deixar de tratar gêneros textuais ligados à esfera literária, já que textos literários podem ser considerados modelares de leitura.

O mesmo ocorre com gêneros ligados à esfera do jornalismo, uma vez que, por meio de tais textos, os estudantes não só são informados do que acontece no mundo, como também tomam contato com opiniões a respeito de fatos e de temas relevantes, sendo, portanto, importantes para sua formação, não só como leitores e produtores de textos mas também como cidadãos. Dessa forma, gêneros como poema, conto, romance, artigo de opinião, editorial, resenha, reportagem e notícia necessariamente deverão fazer parte do repertório de leitura dos estudantes.

Neste artigo, abordo especificamente um gênero textual ligado à esfera do jornalismo, a notícia, uma vez que é por meio dela que os estudantes são informados de fatos que ocorrem não só a seu redor, mas também daqueles ocorridos em lugares distantes e que têm alguma relevância. Acrescente-se, ainda, que textos jornalísticos fornecem aos estudantes conhecimentos de mundo que lhes servirão de subsídios para a produção de seus próprios textos.

Os jornais de maior circulação, em seus manuais de redação, recomendam aos jornalistas que, ao noticiarem um fato, sejam objetivos e imparciais, uma vez que a imparcialidade é fator de credibilidade dos veículos de comunicação. Neste artigo, pretendo responder à pergunta: as noticias de jornais são relatos objetivos de fatos ocorridos, ou reconstruções de fatos segundo a ótica particular do jornalista?

Algumas considerações teóricas

Nas noticias, ao contrário do que ocorre nos editoriais e artigos de opinião, espera-se do jornalista alto grau de objetividade ao noticiar fatos. A objetividade em textos jornalísticos, no entanto, pode ser considerada uma ficção; pois, em maior ou menor grau, todo texto traz em si as marcas de seu enunciador. O enfoque pelo qual o jornalista vê o fato revela o ângulo cognitivo, uma vez que demonstra os procedimentos que acionou para a reconstrução do acontecimento enunciado na notícia. Essas marcas de subjetividade estão presentes na superfície do texto, fornecendo pistas aos leitores para identificar a opinião do autor num texto que, em princípio, a objetividade deveria ser uma de suas características principais. Em síntese: a subjetividade está presente em todo tipo de textos, inclusive naqueles que se apresentam como objetivos.

Por mais objetiva que pretenda ser uma notícia de um jornal, o simples fato de ela estar lá publicada já é indício de subjetividade, já que, entre diversos acontecimentos que deveriam ser noticiados, escolheu-se um e não outro. Acredita-se que notícias são relatos de fatos que efetivamente ocorreram, o que levaria a uma conclusão de que se caracterizam pela objetividade.

Como ressaltei, isso não é totalmente verdade, porque, ao reproduzir o acontecimento, o jornalista, sujeito constituído no e pelo discurso, não faz uma mera reprodução, mas uma interpretação e, na interpretação, há sempre certa dose de subjetividade. As notícias que lemos têm uma relação indireta com o fato noticiado, na medida em que o relato é mediado pela voz do jornalista, que não apenas noticia, mas também constrói a notícia, transformando um acontecimento empírico (o fato ocorrido) em acontecimento discursivo (a notícia). Acrescente-se que, em diversos casos, o jornalista não relata um acontecimento que presenciou diretamente; não é testemunha ocular do fato. Seu relato é, muitas vezes, reconstrução de um fato por meio de depoimento de outros que presenciaram diretamente o ocorrido. Oswald de Andrade, numa frase bastante irônica, já assinalava que “o jornalista não relata o que houve, mas o que ouve”.

O jornalista, por ser um sujeito ideologicamente constituído, está imbuído de crenças, interesses, opiniões, preconceitos que, de alguma maneira, manifestam-se em seu texto.

Não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos, crenças e emoções. Isso não o exime, porém, da obrigação de ser o mais objetivo possível. Para relatar um fato com fidelidade, reproduzir a forma, as circunstâncias e as repercussões, o jornalista precisa encarar o fato com distanciamento e frieza, o que não significa apatia nem desinteresse.

Ressalto, no entanto, que objetividade e subjetividade não devem ser encaradas de forma absoluta, pode-se afirmar que há escalonamento nesses conceitos, já que há graus de mais objetividade e de mais subjetividade. Há sempre elementos de subjetividade na objetividade e de objetividade na subjetividade, portanto nunca se é inteiramente subjetivo nem totalmente objetivo, já que esses conceitos não são excludentes, ao contrário, formam um continuum.

Marcadores linguísticos de subjetividade

Passo agora a analisar notícias e manchetes de jornais procurando identificar elementos linguísticos que revelam que o jornalista não apenas noticia, mas também exprime seu ponto de vista sobre o fato noticiado. O corpus escolhido foram notícias recolhidas em um jornal de grande circulação, tanto pelo meio impresso, quanto digital: Folha de S. Paulo.

O linguista francês Oswald Ducrot, criador da semântica argumentativa, cunhou o termo operadores argumentativos para designar certos morfemas da gramática de uma língua natural cuja função é indicar a força argumentativa dos enunciados. Para esse autor, a interpretação de um enunciado não se encontra exclusivamente nele mesmo, mas nas estratégias que o enunciador utilizou para levar o leitor a aceitar argumentos que, muitas vezes, não estão explícitos na superfície textual.

Os operadores argumentativos, assunto já tratado no blogue (clique aqui) são representados por conectivos, notadamente as conjunções e locuções conjuntivas (e, mas, porque, logo, ou, pois, embora, desde que, se bem que, etc.), advérbios (só, agora, ainda, já, etc.) e outras palavras que, dependendo do contexto, não se enquadram em nenhuma das dez categorias gramaticais propostas pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) e são, pelas gramáticas tradicionais, classificadas como palavras denotativas (até, inclusive, também, afinal, então, aliás, etc.).

Pretendo mostrar como em notícias de jornais, que a rigor deveriam se caracterizar por alto grau de objetividade, os operadores argumentativos, particularmente aqueles que introduzem enunciados pressupostos, são usados para exprimir o ponto de vista do jornalista sobre o fato noticiado. Para tanto, comento a seguir algumas notícias e manchetes extraídas do jornal Folha de S. Paulo.

Notícia 1

Corinthians só empata com o Juventus e frustra chance de liderança

São Paulo (SP) – O Corinthians deixou escapar neste sábado a oportunidade de assumir a liderança do Campeonato Paulista.

Em jogo no estádio do Morumbi, o Timão precisava de uma vitória e chegou a ficar na frente no placar, mas acabou cedendo o empate e amargou o resultado de 2 a 2 com o Juventus.

O autor da notícia acima e grande parte dos leitores, possivelmente dado seu conhecimento de mundo, têm como modelo que o Corinthians, por ser um time considerado grande, teria por obrigação vencer o Juventus, time considerado pequeno. Portanto, o resultado do jogo (um empate) não estaria conforme esse modelo e isso fica explícito na manchete. O fato ocorrido foi este: O Corinthians empatou com o Juventus por 2 a 2 no estádio do Morumbi e, com esse resultado, não conseguiu alcançar a liderança do Campeonato Paulista.

No entanto, ao optar pelo emprego do operador argumentativo , o jornalista revela sua opinião sobre o fato noticiado, na medida em que orienta os leitores da notícia para uma conclusão e não outra: o resultado não foi bom para o Corinthians. Evidentemente, as marcas de subjetividade não se restringem aos operadores argumentativos. Nessa notícia, a seleção lexical também revela as marcas do enunciador no enunciado. Formas verbais como frustra, deixou escapar, acabou cedendo, além de expressões metafóricas como amargou e impedir a festa deixam transparecer a opinião do jornalista: o Corinthians teria de vencer e o resultado (um empate) foi frustrante e amargo. Outro fato que manifesta a subjetividade presente no título da notícia é a posição ocupada pelos actantes na frase: o Corinthians, como sujeito em início de frase, e o Juventus, como complemento em final de frase, destacando o papel mais relevante do elemento que ocupa na frase a função de sujeito.

Notícia 2

38% dos produtos omitem informação sobre gordura trans

Pesquisa feita pelo Idec com 370 alimentos industrializados mostra que só 62% cumprem a lei, em vigor há dois meses.

A presença no enunciado do operador argumentativo é marca de subjetividade, já que revela uma opinião em relação ao fato narrado. Tal operador orienta o leitor para a conclusão de que o número dos produtos industrializados que cumpre a lei é pequeno (só 62%).

Há aí um dado que merece reflexão, já que se exprime opinião com base em dados estatísticos oriundos de uma pesquisa. Os dados são: 62% cumprem a lei e 38% não cumprem. A rigor, temos a seguinte informação: a maioria das empresas cumpre a lei, ou o número de empresas que cumpre a lei é bem maior do que o das que não cumprem. No entanto, quem redigiu a notícia pretendeu levar o leitor a concluir que o número de empresas que cumpre a lei é pequeno. Um outro jornalista, a partir dos mesmos dados, poderia conseguir efeito de sentido bastante diferente, redigindo manchete e lide assim:

38% dos produtos omitem informação sobre gordura trans

Pesquisa feita pelo Idec com 370 alimentos industrializados mostra que a maioria cumpre a lei, em vigor há dois meses.

Manchete de notícia 3

Nem executivo cuida direito da próstata

O enunciado acima foi manchete de primeira página, do caderno Cotidiano do jornal Folha de S. Paulo. A notícia relata estudo feito pelo Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, que mostra que quase metade dos executivos não realiza uma vez por ano exames de rotina para detecção do câncer de próstata.

A manchete deixa pressuposta uma opinião acerca do fato que noticia. O operador argumentativo nem orienta o leitor para a opinião implícita no enunciado. Pode-se ler nesta manchete algo como: os executivos, profissionais que têm bons salários e alto grau de informação, deveriam revelar maior preocupação no cuidado com a próstata do que trabalhadores de profissões menos prestigiadas socialmente, fazendo regularmente o exame preventivo; ou ainda: se os executivos, que são profissionais privilegiados, com bons salários, acesso a planos de saúde e teoricamente bem informados, não fazem o exame de prevenção do câncer de próstata, trabalhadores menos informados e com menor renda também não o fazem.

Conclusão

Neste artigo, procurei dar alguns subsídios no que se refere à leitura de textos jornalísticos, particularmente notícias, destacando que, mesmo que, por crença social, deveriam pautar-se pela objetividade, trazem em si marcas de subjetividade, explícitas na superfície textual.

O objetivo foi mostrar, a partir de elementos linguísticos presentes na superfície dos textos, particularmente de categorias gramaticais que funcionam como operadores argumentativos, que os textos informativos de jornais não são relatos isentos. Tais textos são, a partir de modelos cognitivos acionados pelo jornalista, reconstruções de fatos empíricos. O jornalista categoriza, representa e constrói um fato discursivo por meio da linguagem e, nela, deixa inscrita as marcas de subjetividade.

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