A leitura na era da internet

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No post anterior, chamei a atenção para o fato de que a leitura tem uma história e destaquei algumas mudanças na forma de nos relacionarmos com os textos. Neste post, tratarei especificamente de uma mudança que teve início nas últimas décadas do século XX e que se estende até nossos dias: a passagem do texto da folha de papel para a tela do computador. Com essa nova tecnologia, é natural que as pessoas questionem se ela representará o fim do livro impresso. Especificamente quanto à literatura, questiona-se se as obras literárias assumirão outras formas. A rede mundial de computadores permitiu acesso fácil a diversos textos do cânone literário, particularmente àqueles que estão em domínio público.

Antes da internet, o candidato a novo autor tinha de sair à procura de editoras, bater de porta em porta e apresentar os originais da obra, que, na quase totalidade dos casos, era recusada para publicação. Com a internet, abriu-se a possibilidade para novos autores terem seus textos publicados com custo zero. Esses textos normalmente são publicados em blogs e lidos, principalmente, por pessoas ligadas ao círculo de conhecimento do novo autor. O número de textos de novos autores publicados na internet aumenta vertiginosamente a cada dia, de modo que é impossível alguém acompanhar o volume total dessas publicações, fato que resulta na conclusão de que, adotando o critério de que o literário é aquilo que foi institucionalmente eleito como tal, tais textos não costumam ser considerados literários, o que não quer dizer que não possam ter qualidades literárias.

Se há uma farta bibliografia em relação às práticas de leitura tradicionais, o mesmo não ocorre em relação à leitura na internet. É certo que de um tempo para cá tem crescido significativamente o número de livros, artigos científicos e pesquisas que têm como foco a leitura na rede. Por outro lado, se há pessoas refratárias à leitura na internet, é fato também que o número de leitores na rede cresce significativamente a cada ano, sobretudo entre a população mais jovem, conforme dados do Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil. Por essa razão educadores, alunos e o público em geral não podem ficar alheios a essa realidade.

Antes da internet, textos de gêneros diversos eram veiculados em suportes diferentes: um romance era veiculado em forma de livro impresso com capas e miolo (embora esse gênero tenha aparecido inicialmente em forma de folhetins); uma carta, em uma folha de papel envolvida por um envelope; um jornal, em um determinado formato impresso em um tipo especial de papel. Com o advento do computador, essa relação entre gênero e suporte tornou-se fluida, na medida em que textos de gêneros muito diversos podem ser lidos num mesmo suporte – a tela do computador –, o que, segundo Chartier (2002), trará como consequência o fato de que os discursos não serão mais identificáveis pela sua materialidade, podendo levar os leitores a não distinguirem de imediato, pelos elementos visíveis, o gênero textual. Por outro lado, com a internet, abriu-se aos leitores a possibilidade de acesso a um número incalculável de textos. Num site como o Domínio Público, o leitor pode ter acesso a diversas obras literárias e não literárias que caíram em domínio público sem pagar nada por isso. No conto A biblioteca de Babel, Jorge Luis Borges nos fala de uma biblioteca que conteria todos os livros do mundo. Com a internet, esse sonho de Borges é cada vez mais possível. Sobre o espaço que a rede abre para os leitores, Maingueneau (2006, p. 106) afirma que

A internet oferece mesmo a seus usuários mais comuns alguns poderes do espaço literário tradicional. No antigo regime da literatura, o acesso à produção de enunciados oferecido a um público era drasticamente limitado; com a web, consideráveis populações podem participar de dois espaços, passar todos os dias algumas horas comunicando-se no âmbito de modalidades que não recorrem à interação comum, oral ou escrita, aquele em que indivíduos socialmente identificáveis se comunicavam em espaços sujeitos a restrições espaciais e temporais. Tal como na literatura, em que o próprio enunciado impõe seu contexto, aquele enviado pela web define a identidade de seu locutor, o lugar e o momento de sua emissão: já não há acesso a um contexto dado, mas a uma enunciação que institui suas próprias coordenadas.

Evidentemente, não usamos o computador apenas para ler e postar textos verbais. O ciberespaço é uma hipermídia. Mídias que antes circulavam em suportes diferentes hoje são acessadas por um único suporte: o computador. Por meio dele, linguagens se cruzam e se hibridizam, assistimos a filmes, ouvimos estações de rádio, enviamos e recebemos mensagens de voz, ouvimos músicas, tiramos fotos, etc., o que faz do computador um instrumento multissemiótico.

Umberto Eco, em palestra proferida em dezembro de 2003 na Biblioteca de Alexandria, no Egito, sustenta que uma nova tecnologia não torna necessariamente a anterior obsoleta e cita como exemplo os carros, que são mais rápidos que as bicicletas, mas não as substituíram. De fato, a invenção da tevê não eliminou o rádio; o cinema não eliminou o teatro. Eco defende que o livro é uma daquelas invenções humanas que já nasceram perfeitas: “Livros pertencem a essa classe de instrumentos, que, uma vez inventados, não foram aprimorados porque já estão bons o bastante, como o martelo, a faca, a colher ou a tesoura”  (Eco, 2003).

Para Santaella (2004, p. 15), “o livro […] está longe de ser um mero objeto. Ele foi instaurador de formas de cultura que lhe são próprias, que incluíram, desde o Renascimento, nada menos que o desenvolvimento da ciência moderna e a constituição do saber universitário”.

A ideia de leitura está tão associada a suportes tradicionais que, para muitos usuários da rede mundial de computadores, ela não é vista como leitura quando é feita na tela de um computador. Em minha tese de doutorado), realizei uma pesquisa com professores a fim de verificar suas práticas de leitura. Para os informantes ouvidos na investigação, ler e navegar na internet são coisas distintas. A provável explicação para isso deve residir num modelo de leitura cujo texto se apresenta impresso em papel (livro, jornal, revistas), considerando-se a leitura na tela de computadores uma atividade outra, diversa da feita em suportes tradicionais. É fato que usuários da internet sentem que as atividades que praticam quando navegam pela rede não são exatamente as mesmas que executam em suportes tradicionais. Basta observar que, para designar os atos de escrita na rede, os internautas fazem uso de um neologismo – o verbo teclar –, muito provavelmente porque o ato de escrever na internet, em algumas circunstâncias, apresenta características da linguagem escrita e da oral simultaneamente, não podendo, pois, ser definido com precisão pelos verbos escrever ou falar. Acrescentamos ainda que o verbo navegar, com o sentido de “consultar sequencialmente diversos hipertextos, acionando os links neles contidos para passar de um para outro” (Houaiss), é empregado pelos internautas com sentido mais amplo do que o registrado pelo dicionário, envolvendo atividades que vão muito além do simples ato de ler ou percorrer textos. Em navegar está contida a ideia de passar de um lugar a outro e também a ideia de orientação. Não é por acaso que o ícone do navegador Safari, da Apple, é uma bússola. Quem percorre hipertextos na internet corre sempre o risco de navegar sem rumo, clicando num link que leva a outro, clicando neste, que leva a um terceiro, e assim sucessivamente, de sorte que, se não tiver um sentido de orientação, acaba se perdendo. Para lermos na rede, devemos ter em mente o procedimento adotado por Teseu ao entrar no labirinto para combater o Minotauro (afinal, o hipertexto pode ser visto como um labirinto). Teseu desenrolou um fio que lhe foi dado por Ariadne, para que pudesse sair do labirinto. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino médio fica clara a ideia de que quem navega na rede tem de fazê-lo com critério, pois “a enorme quantidade e a variedade de informações exigem que o cidadão desenvolva a capacidade de selecioná-las, considerando seus objetivos, o que implica no desenvolvimento das capacidades de analisar, estabelecer relações, sintetizar e avaliar” (Brasil, 2000, p. 61).

No próximo post, continuarei o assunto, tratando do hipertexto. Aguardem.

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Referências

BRASIL. Ministério da Educação.. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Parte II – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília, DF, 2000.

CHARTIER, Roger. Línguas e leitura no mundo digital. In: CHARTIER, Roger. (Org.). Os desafios da escrita. São Paulo: Unesp, 2002. p. 11-32.

ECO, U. Muito além da internet. dez. 2003. Entrevista. Disponível em: <http://www.ofaj.com.br/textos_conteudo.php?cod=16>. Acesso em: 17 nov. 2022.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.

SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

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