A leitura tem uma história

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A mudança do suporte livro de papel para o formato digital não foi a primeira na forma de circulação dos textos (e provavelmente não será a última), tampouco a mais revolucionária. Dentro dos limites deste artigo e sem a intenção de esgotar o assunto, apresento a seguir uma breve história da forma de circulação de textos.

Uma primeira e revolucionária forma de circulação de textos foi, para usar uma palavra bem em moda nos dias de hoje, a portabilidade, ou seja, um texto que pode ser levado de um lugar para outro é mais prático do que um que não pode ser transportado. Nesse sentido, o texto escrito em um papiro, material obtido de uma planta aquática existente nas margens do rio Nilo, do rio Eufrates e do lago Tiberíades, na Síria, ou em pergaminho, pele de animal – cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha – preparada para se escrever nela, representa um avanço em relação ao texto que era gravado em monumentos de pedra. Umberto Eco destaca que não foi por acaso que as primitivas civilizações árabe e judaica, que eram nômades, tinham por base um livro. Evidentemente, papiro, pergaminho e papel não foram os únicos materias utilizados para se gravarem textos. Tábuas de argila encontradas na Mesopotâmia também foram usadas, assim como tecidos, conchas, cerâmicas e tábuas de cera. André Belo, em seu livro História & livro e leitura (Editora Autêntica) destaca que “cada uma dessas diferentes formas de livro implicou, ao longo de uma história, já com alguns milênios, diversos modos de escrever e ler”.

Uma segunda revolução foi a passagem do rolo, também chamado volumen, para o códex, ou códice, uma espécie de avô do atual livro de papel, nos séculos II a IV. Os códex eram folhas de pergaminho manuscritas costuradas e encadernadas numa espécie de livro. O rolo, como o próprio nome indica, era um instrumento em que se enrolavam folhas de papiro ou pergaminho (em geral, até vinte folhas coladas umas às outras). Para ser lido, era segurado com as mãos e desenrolado. De certa forma, lembra um pouco a leitura que fazemos na tela de um computador, descendo o texto por meio das barras de rolagem na lateral da tela (scroll bar). Em decorrência disso, a leitura era feita em pé e não se podiam fazer anotações enquanto se lia, uma vez que ambas as mãos estavam ocupadas. O rolo apresentava outro problema: sua capacidade era pequena. Um texto longo teria de ser “dividido” em vários rolos. A Ilíada, de Homero, por exemplo, era distribuída em 24 rolos separados, denominados livros.

Em relação aos textos que circulavam em rolos de pergaminho, os códex apresentavam as seguintes vantagens: a) permitiam que o leitor tivesses as mãos livres, na medida em que não precisava segurar o rolo, podendo, dessa forma, fazer anotações; b) com os códex podiam ser usados os dois lados do pergaminho (frente e verso), o que não era possível com o rolo; isso implicava diminuição do custo (o pergaminho era um material muito caro), além do que a quantidade de texto que cabia no códex era bem maior do que a que cabia no rolo.

A mudança do rolo para o códex permitiu a paginação com inegáveis vantagens, como a inserção de índices e referências. No códex, o leitor podia confrontar com facilidade uma passagem com outra, o que não era tão simples no caso do rolo. Steven Roger Fischer, no livro História da leitura (Editora Unesp), ressalta que o formato códex possibilitou inovações como a subdivisão de uma obra em capítulos e a reunião de vários textos num só volume, as chamadas antologias. Esse formato do primitivo livro serve como parâmetro para as publicações na internet, fato que podemos observar no emprego da palavra página para designar o conjunto de informações exibidas na tela de um computador por meio de um navegador. Um site é formado por páginas. Acessamos páginas na internet, rolamos páginas…

Outra revolução, ocorrida no século XII, permitiu uma prática de leitura que usamos até hoje: a leitura silenciosa, que foi possível graças à instauração de espaços entre as palavras. Imagine como devia ser difícil a leitura de um texto em que as palavras estavam graficamente emendadas umas às outras. A separação das palavras por espaços em branco exige por parte do leitor um menor esforço cognitivo de processamento do texto do que o despendido quando não há separação entre elas. Com a separação das palavras no texto, surgiram os sinais de pontuação, facilitando ainda mais a leitura. Nesse sentido, Dominique Maingueneau, no livro Discurso literário (Editora Contexto), esclarece que “a ausência de separação na escrita vincula-se a um tipo de leitura lenta, na maioria das vezes em voz alta, que implica um conhecimento muito bom da língua em que se lê”.

A passagem de uma leitura em voz alta (leitura oralizada) para uma leitura silenciosa (leitura visual) possibilitou que se lessem os textos com maior rapidez e, consequentemente, que se lessem textos mais complexos, além de ter alterado significamente o ato de leitura, que passou de público a privado, já que a leitura não era mais compartilhada com outras pessoas. Alberto Manguel, em seu livro Uma história da leitura (Editora Companhia das Letras), relata a surpresa que teve Santo Agostinho ao ver que Santo Ambrósio lia sem emitir sons, o que comprova que a leitura silenciosa não era uma prática corrente na época em que o fato relatado ocorreu (século IV).

Mas a leitura silenciosa não implicou apenas mais rapidez na leitura, acarretou também a formação de leitores mais eficientes, na medida em que exige uma grande capacidade de concentração continuada. Esse tipo de leitura, que era exclusividade dos monastérios, passou a ser praticada também nas escolas e nas universidades. Vale observar que o fato de a leitura silenciosa ter se disseminado a partir do século XII não significa que civilizações mais antigas não tivessem essa habilidade. Na Antiguidade, a leitura em voz alta estava ligada a uma prática cultural que associava o texto e a voz.

No século XV, outra grande revolução: a invenção da imprensa por Gutenberg. Com esse fato temos a difusão do texto em larga escala, pois ele agora não precisava mais ser copiado manualmente pelos escribas. Para Maingueneau, na obra citada (p. 221),

A imprensa acentuou com vigor os efeitos da escrtita. Ao oferecer a possibilidade de imprimir um número considerável de textos perfeitamente idênticos, proporcionou aos leitores uma autonomia ainda maior, libertando-os das oficinas dos copistas. Ao reduzir os custos de fabricação e encurtar os prazos de difusão, permitiu o surgimento de um verdadeiro mercado da produção literária. Propiciou igualmente o ideal de uma educação universal mediante o acesso de todos a um corpus de obras.

Roger Chartier, no livro Formas e sentido (Editora Mercado de Letras), ressalta que, embora a invenção de Gutenberg tenha sido uma revolução, o livro impresso manteve as características fundamentais do manuscrito: o texto disposto em páginas e folhas dobradas costuradas em cadernos. Segundo esse autor, a forma do livro como a conhecemos hoje data de doze ou treze séculos antes da invenção dos tipos móveis. Gutenberg não inventou o livro, mas graças a ele foi possível que o livro pudessse atender a um maior número de pessoas, ampliando significativamente o número de leitores. Mas é preciso assinalar que a invenção de Gutenberg só foi possível graças à escrita alfabética – já que com poucos tipos, entre 20 e 30, era possível imprimir qualquer texto – e também à invenção do papel, material muito mais barato que o pergaminho.

A partir do século XVIII, pode-se observar outra mudança nas práticas de leitura: a passagem da leitura intensiva para a extensiva. Na intensiva, o leitor se dedicava à leitura de poucos livros, que eram lidos, relidos, memorizados e comentados. Esse tipo de leitura recaía, sobretudo, nos livros religiosos, especialmente na Bíblia. Na extensiva, o leitor consome um número bem maior de livros, lendo mais títulos e com mais rapidez. Evidentemente, a passagem de uma prática de leitura intensiva para uma extensiva só foi possível graças à invenção da imprensa, que possibilitou a difusão do livro em larga escala.

Regina Zilberman, no texto “Sociedade e democracia da leitura”, que faz parte do livro Estado de leitura, organizado por Valdir Heitor Barzotto (Mercado de Letras), chama a atenção para o fato de que a leitura, antes da sociedade industrial da Europa no século XIX, era vista como um ócio das camadas privilegiadas. Com as mudanças sociais decorrentes da industrialização, ainda segundo essa autora, a leitura passou a ser considerada forma de ascensão social, de sorte que não saber ler ficou vinculado ao fracasso social. A consequência disso foi que a escolarização passou a se tornar obrigatória, pelo menos no que corresponderia hoje ao que denominamos de ensino básico. A expansão da rede de ensino, sobretudo nos centros urbanos, e novas formas de produção e circulação editorial contribuíram de maneira decisiva para estabelecer práticas de leitura responsáveis pelo aumento significativo do público leitor no Brasil.

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