Ainda sobre a noção de erro em língua

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Em post anterior, tratei do conceito de erro em língua. Volto ao tema com novas considerações.

O conceito de erro em língua tem sido usado por gramáticos mais conservadores para designar qualquer desvio da norma-padrão. Assim, seria errado dizer: Assisti o jogo, Patrícia namora com Ivan, Me disseram que ela foi aprovada, Simpatizei-me com Rebeca, uma vez que esses usos estão em desacordo com as gramáticas normativas que preconizam as formas Assisti ao jogo, Patrícia namora Ivan, Disseram-me que ela foi aprovada e Simpatizei com Rebeca, respectivamente.

Para gramáticos e gramáticas que preconizam o uso da norma-padrão, só existe uma forma correta de dizer as coisas. Por trás dessa concepção, reside o fato de não reconhecerem que a língua varia, o que caracteriza uma contradição; pois, ao afirmarem que uma determinada forma é a correta, estão reconhecendo implicitamente que existem outros usos, que rejeitam ou fingem que não existem. Como se vê, a norma-padrão é uma utopia. Em nenhuma sociedade as pessoas falam do mesmo jeito sempre. A norma-padrão não tem existência empírica, ela só existe nos manuais e gramáticas mais tradicionais.

Para reforçar o que afirmei, chamo a atenção para dois fatos. O primeiro:  mesmo em registros mais monitorados de parte de pessoas com acesso à cultura letrada, construções como Assisti o jogo, Patrícia namora com Ivan, Me disseram que ela foi aprovada e Simpatizei-me com Rebeca são frequentes, o que significa que são representativas da norma culta. O segundo: as línguas mudam no tempo, o que significa que certas construções que eram comuns no passado se alteraram. Se antigamente a construção Custou-me acreditar naquilo era representativa do falar das pessoas “cultas”, nos dias atuais ela deixou de ser usada mesmo por pessoas escolarizadas em situações mais monitoradas, que passaram a usar a forma Eu custei para acreditar naquilo. O mesmo ocorreu com a construção Atender ao telefone que foi abandonada pelos falantes, que passaram a dizer Atender o telefone. Esse exemplo mostra uma tendência em se transformar complementos introduzidos por preposição em complementos sem preposição: assistir o jogo, aspirar o cargo, visar uma posição destacada, pagar o médico, obedecer o regulamento etc.

O inverso, transformar complemento sem preposição em complemento com preposição, ocorre com menor frequência. Poderíamos citar o verbo namorar que, segundo a norma-padrão, requer complemento sem preposição (namorar alguém), mas o uso dominante passou a ser namorar com alguém. A provável explicação para isso é que os falantes assim o fazem por analogia ao verbo casar.

Os linguistas insistem no fato de que as línguas apresentam variações e reservam o termo “erro” apenas para designar construções que não são possíveis pelas regras da gramática natural da língua, aquela que todo falante conhece e domina desde pequeno, independentemente de escolarização formal. Assim, nos exemplos a seguir, segundo os linguistas, apenas a construção assinalada com asterisco (*) constituiria um erro.

Os meu colega não qué falá com tu.

Os meus colegas não querem falar contigo.

* Meus colega os não qué falá com tu.

 Veja que, do ponto vista linguístico, “erro” seria a colocação do artigo depois do substantivo (colegas os), porque infringiria uma regra natural da língua. Note que não é necessário ensinar que o artigo precede o substantivo. Mesmo pessoas que nunca frequentaram a escola não infringem essa regra.

As pessoas costumam perguntar: se a língua apresenta variações, qual delas é a correta? Ou ainda: qual delas devo usar? A resposta é simples: a variedade linguística que se deve usar será a adequada ao contexto comunicativo, ou seja, ao produzir textos, falados ou escritos, deve-se levar em conta os seguintes fatores:

  1. Quem é o destinatário do texto?  No caso de textos escritos em que não se pode individualizar o(s) destinatário(s), ele será o leitor presumido, ou seja, numa carta a um jornal de grande circulação, o destinatário serão os leitores do jornal.
  2. Qual é o assunto do texto? Uma solicitação de emprego? Um convite para uma festa informal? Um pedido de revisão de prova? Uma mensagem de parabéns a uma colega de faculdade que foi aprovada num concurso público?
  3. Qual é o suporte utilizado para fixar o texto? Como seu texto se tornará visível? Por meio de uma comunicação eletrônica ou de texto escrito e impresso em folha de papel? Será visível em um cartaz fixado em uma parede, ou em um post publicado em uma rede social?
  4. Qual é o gênero do texto? A variedade linguística de um anúncio não é a mesma que a de um requerimento. Uma monografia de trabalho de conclusão de curso será redigida numa variedade linguística diferente da de uma crônica.
O assunto deste post é comentado em nosso novo livro: Língua portuguesa: desenvolvendo competências de leitura e escrita, a ser lançado brevemente pela Editora Saraiva.

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