Breve história da língua portuguesa

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Um colégio da região Norte do país que adota nosso Curso Prático de Gramática entrou em contato comigo informando que, em exames naquela região, é cobrado o conteúdo história da língua portuguesa. Esse assunto, de fato, não é contemplado pelas gramáticas da língua por uma razão óbvia: não se trata de conteúdo gramatical. Como esse assunto pode ser de interesse de alguns, escrevi este artigo, que, de maneira bem simples, trata do tema.

Introdução

Uma língua pode ser estudada do ponto de vista sincrônico ou diacrônico. No primeiro caso, toma a língua como ela é falada num dado momento e se faz a descrição dela. As gramáticas tradicionais costumam ser de base sincrônica. Ocorre que o recorte que as gramáticas normativas fazem é o de um estágio da língua muito distante do uso que se faz atualmente. Em razão disso, prescrevem normas há muito abandonadas pelos falantes, mesmo na variedade culta. Estudar a língua do ponto de vista diacrônico é estudar as modificações que a língua sofreu no tempo. Isso diz respeito à gramática histórica e não à gramática normativa ou descritiva. Além disso, cumpre ainda assinalar que as línguas têm uma história que pode ser contada: qual sua origem, que outras línguas contribuíram para sua formação e, como as línguas mudam no tempo, é ainda possível destacar períodos da história de uma língua.

As línguas têm uma história que pode ser contada, o que não deve ser confundido com uma abordagem diacrônica da língua. O tema deste post é, como afirmei, história da língua portuguesa, ou seja, não tratarei das transformações que as palavras sofreram no tempo até chegarem à forma atual. Exemplificando: não tratarei as transformações por que passaram palavras latinas como malam, matrem, noctem, ponere, que, no português atual, têm, respectivamente, as formas , mãe, noite e pôr.   

As origens do português

O português é uma língua neolatina, isto é, proveniente do latim, língua usada, tanto na modalidade falada quanto escrita no antigo Império Romano. Além do português, são também línguas neolatinas: o espanhol, o francês, o italiano, o romeno, que, assim como o português, são línguas oficiais de países. Há outras línguas neolatinas, de que são exemplos o catalão e o galego. O catalão é falado na região da Catalunha, e o galego, na Galícia, ambas regiões da Espanha.

Quando se fala que as línguas neolatinas são derivadas do latim, é preciso levar em conta que, como ocorre em todas as línguas, o latim também apresentava variedades, ou seja, nem todos os falantes do latim faziam uso dessa língua da mesma maneira. Em linhas bem gerais, havia o latim clássico, variedade linguística que se manifestava na língua escrita, de domínio de parcela ínfima da população, as pessoas letradas, e o latim vulgar, variedade linguística falada pelas camadas populares, que representavam a maioria da população, fossem pessoas livres ou escravizadas e, em sua grande maioria, analfabetas.

O latim vulgar (sermo vulgaris) era a língua dos soldados (milites), dos marinheiros (nautae), dos agricultores (agricolae), dos artesãos (fabri). É preciso ressaltar que latim clássico e latim vulgar não eram duas línguas diferentes, mas duas variedades da mesma língua, como ocorre com o português denominado culto e o português popular.

Com a expansão do Império Romano, a língua latina é levada para as regiões conquistadas. É preciso ressaltar que a variedade popular do latim que os romanos levaram para as terras conquistadas, não era o latim clássico, aquele presente nas obras literárias e filosóficas, mas o latim vulgar, o falado pelo povo.

Os habitantes das regiões conquistadas tinham sua própria língua que vai acabar se misturando com o latim vulgar dando origem aos vários romances, transformações sofridas por um substrato linguístico, representado pelas línguas faladas pelos povos das regiões conquistadas. Em resumo: as línguas neolatinas não derivaram diretamente do latim vulgar, mas dos diversos romances. Como foram várias as regiões conquistadas pelos romanos e como cada uma delas tinha seu substrato linguístico, serão vários os romances. Para efeitos de história da língua portuguesa, deve-se observar a presença do romanos na Península Ibérica a partir do século II a.C. e, em especial, a formação de Portugal como nação.

Embora as línguas neolatinas tenham surgido na Europa, a política expansionista europeia levou essas línguas para os diversos continentes. Para ficar só no exemplo do português, a expansão ultramarina levou o português para o continente africano, onde é falado em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, para o continente asiático, onde é falado no Timor Leste, e para o continente americano, onde é a língua oficial do Brasil, com mais de 200 milhões de falantes.

Pré-história do português

O português, como se assinalou, resulta das transformações no tempo e no espaço por que passou o latim vulgar trazido pelos romanos a partir do século II a.C. para a Península Ibérica. Como se destacou, o latim vulgar encontrou um substrato linguístico, as línguas faladas pelos povos que habitavam a Península, entre os quais os celtas e os iberos, que assimilaram a cultura romana, ou seja, romanizaram-se. Excetuando os bascos, que continuaram a falar sua própria língua, os demais povos habitantes da Península Ibérica não só adotaram como língua o latim falado pelos conquistadores, como também abraçaram a religião praticada pelos romanos, o cristianismo.

Como as línguas mudam, os romances foram se modificando. Para isso, contribuiu a invasão a partir de 409 d.C. de outros povos, os vândalos, os suevos e os visigodos, cada qual com seu idioma. Esses povos, genericamente designados por bárbaros, cujas línguas eram de origem germânica, estabeleceram-se na Península Ibérica a partir do século V. Ressalte-se que sua contribuição para a língua e para a cultura foi muito pequena. Por outro lado, contribuíram para a fragmentação do Império romano na Península Ibérica, favorecendo a diversificação do latim vulgar ali falado.

Em 711 d.C., os árabes começam a invadir a Península Ibérica e, em pouco tempo, exceto a região norte-noroeste, estava toda ocupada por esses povos islâmicos oriundos do norte da África, que eram chamados de mouros pelos ibéricos.

A partir de 722 d.C. inicia-se a Reconquista, isto é, a expulsão dos mouros da Península. Trata-se de processo longo e gradativo. Inicialmente os mouros vão sendo empurrados pelos cristãos para o sul. Reconquista-se Coimbra em 1064; Santarém e Lisboa em 1147; Évora em 1605. Com a retomada de Faro em 1264, Portugal está praticamente formado. Na Espanha, a expulsão dos árabes durou mais, já que só foram integralmente expulsos da Península em 1492 com a retomada de Granada, na região da Andaluzia, no sul da Espanha.

Entender que a Reconquista, em Portugal, se deu do norte, região onde está localizada a Galícia, para o sul, região do Algarve, permite compreender a formação da língua portuguesa, que  nasceu no norte, e foi sendo levada para o sul pela Reconquista. Nesse processo, evidentemente a língua originária, o galego-português, foi sendo modificada. O que seria hoje o português europeu padrão não é o que é falado no norte nem no sul, mas na região central do país, onde está Lisboa.   

Como os árabes estavam num grau de civilização superior habitantes da Península, logo impuseram sua cultura. No que se refere à língua, entretanto, os povos subjugados continuaram a usar seus romances na comunicação cotidiana, no entanto incorporaram palavras da língua dos invasores. Palavras como açúcar, arroz, azeitona, berinjela, jasmim, javali, laranja são apenas alguns exemplos de palavras da língua portuguesa provenientes do árabe.

Embora a influência de uma língua em outra possa ser observada na sintaxe (construção de frases) e na morfologia (flexão das palavras), é no léxico (conjunto das palavras) que ela é mais facilmente observável.  Pelos exemplos apresentados, todos eles relativos ao léxico, pode-se observar que a maior contribuição da língua árabe ao português é de palavras que pertencem à classe dos substantivos. Houve, é claro, adaptações fonéticas como a aglutinação do artigo definido árabe al ao substantivo. O al do início de palavras provenientes do árabe é simplesmente o artigo, isso explica o grande número de vocábulos de origem árabe em português iniciados por al: alcaparra, álcool, alcova, aldeia, alecrim, alface, alfafa, alfaiate, alfazema, alfinete, álgebra, algodão, alicate, alicerce, almanaque, almofada, almôndega, alqueire, alvará.

O surgimento do português como língua nacional

Portugal surge como nação em 1143, durante a Reconquista, quando Dom Afonso Henriques se proclama rei de Portugal. O romance falado na região norte de Portugal era o galeco-português que se estendeu para outras regiões de Portugal, o Sul, inclusive, onde a influência árabe era mais forte. Constituída a nação portuguesa e a fixada a corte em Coimbra e depois em Lisboa, fez-se  necessária, do ponto de vista político, a diferenciação entre o português e o galego, o que ocorreu.  

Os primeiros documentos escritos em português datam do século XII e podem ser observados em produções literárias e documentos históricos. Considera-se a Cantiga da Ribeirinha, também conhecida por Cantiga da Guarvaia, de Paio Soares de Taveirós, o primeiro documento escrito em língua portuguesa. Esse poema é de 1189 ou 1198 e está reproduzido abaixo. Para facilitar a leitura, são indicados os sentidos de algumas palavras  e expressões em português atual.

No mundo non me sei parelha*,
mentre* me for como me vai,
ca ja moiro por vós – e ai!
mia senhor branca e vermelha*,
queredes que vos retraia*
quando vos eu vi em saia*!
Mau dia me levantei,
que* vos enton non vi fea!

E, mia senhor, dês aquel dia’ai!
me foi a m mui mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha*
d’haver eu por vós guarvaia*,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía dũa correa*.

 (TAVEIRÓS, Paio Soares. Cantiga da Ribeirinha. Apud: SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa: era medieval. 4ª. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971, p.38-39).

*No mundo non me sei parelha: não conheço quem se compare a mim

* mentre: enquanto

* mia senhor branca e vermelha: alva e de faces rosadas

* retraia: retrate, represente

* em saia: sem manto

* que: pois

* ben vos semelha: bem vos parece

* d’haver eu por vós guarvaia: que eu deva receber, por vosso intermédio, um luxuoso vestuário de corte

*valía dũa correa: qualquer coisa de ínfimo valor

No século XVI, considerado o século de ouro da literatura portuguesa, surgem obras que consolidam o idioma, especialmente literárias e aquelas cuja função é disciplinar a língua. Entre as obras literárias, destacam-se os autos de Gil Vicente, a novela Menina e moça, de Bernardim Ribeiro, os poemas de Sá de Miranda, e o mais importante poema épico escrito em língua portuguesa, Os lusíadas, de Camões, publicado em 1572, considerada a obra que inaugura o português moderno.

O trecho a seguir é o início da novela Menina e moça, de Bernardim Ribeiro, um texto de 1554. Compare o português desse fragmento como o da Cantiga da Ribeirinha e constate como a língua portuguesa mudou num período de pouco mais de 350 anos. A grafia foi atualizada para estar de acordo com o sistema ortográfico vigente.

“Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras: qual fosse então a causa daquela minha levada, era pequena, não na soube. Agora não lhe ponho outra, senão que já parece havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui eu naquela terra, mas coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava.

(RIBEIRO, Bernardim. Menina e moça. Apud:  SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa: era medieval. 4ª. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971, p.205-206).

No que se refere a obras que visam a disciplinar a língua, surgem as primeiras gramáticas do português, merecendo destaque a Grammatica da Lingoagem Portuguesa, de Fernão de Oliveira, publicada em 1536, e a Grammatica da Lingua Portuguesa, de João de Barros, de 1540.       

Esses acontecimentos históricos serviram como fundamento para a periodização da língua portuguesa. O filólogo português Leite de Vasconcelos (1858 – 1941) apresenta uma divisão em três épocas para a história da língua portuguesa:

  1. época pré-histórica: se estenda das origens da língua portuguesa até o século IX, quando surgem os primeiros documentos latino-portugueses;
  2.  época proto-histórica: estende-se do século IX ao século XII. Nesse período, embora os textos sejam redigidos em latim vulgar, já aparecem palavras portuguesas, o que permite concluir que já existia o galaico-português;
  3. época histórica: inicia-se no século XII, com os primeiros documentos inteiramente escritos em português. Leite de Vasconcelos divide o período histórico em época arcaica, que vai do século XII ao XV, e época moderna, que vai do século XVI aos dias de hoje. 

Outros autores adotam um outro critério para a periodização da língua portuguesa bem mais simples do que o proposto por Leite de Vasconcelos. Por esse critério, o português apresenta dois períodos:

  1. período arcaico: das origens até Camões;
  2. período moderno: de Camões até hoje.

Esse critério deixa clara a importância do autor de Os lusíadas, na medida em que considera esse autor o iniciador do português moderno.

O português no Brasil

No século XVI, inicia-se o processo de colonização do Brasil e o português falado no Brasil começa a apresentar diferenças em relação ao português do colonizador. As mudanças começam a se fazer sentir principalmente no léxico, já que palavras do tupi passam a ser incorporadas ao português para designar topônimos (nomes de lugar), acidentes geográficos, animais, vegetais etc., de que são exemplos Sergipe, Cuiabá, Anhanguera, Araguaia, arara, cutia, jacaré, tamanduá, jiboia, jararaca, peroba, mandioca, aipim, cupuaçu, mingau etc. Algumas expressões que hoje se utilizam largamente na variedade popular têm na sua origem palavras provenientes do tupi, como andar na pindaíba e estar de tocaia.   

A partir do século XVI começam a ser trazidos do continente africano negros para serem aqui escravizados. Como os escravos trazidos para o Brasil eram de etnias diversas, as palavras africanas do português provêm de línguas diversas, sendo as principais o quimbundo, o umbundo, o quicongo e o ioruba.

São exemplos de palavras oriundas de línguas africanas incorporadas ao português:  acarajé, angu, babau, bagunça, bambambã, beleléu, borocoxô, caçamba, caçula, cafundó, canjica, capenga, cucuia, dendê, fubá, molambo, moleque, muxoxo, orixá, quitanda, sacana, vatapá etc.

Além dos colonos portugueses, dos indígenas e dos africanos, numa época mais recente contribuíram para a formação do português brasileiro, imigrantes europeus e asiáticos.

O português brasileiro difere do português europeu (e também do português falado nas ex-colônias portuguesas da África) na pronúncia, na sintaxe, na morfologia e principalmente no léxico, o que significa que há uma norma brasileira, que é a apresentada nas gramáticas brasileiras. Ressalte-se que essas diferenças são mais visíveis na língua falada do que na língua escrita, particularmente em textos marcados por maior formalidade. Na língua escrita, as diferenças restringem-se ao léxico e à sintaxe. As poucas diferenças ortográficas que havia praticamente desapareceram depois que entrou em vigor o Acordo Ortográfico.

Por outro lado, sempre deve-se levar em conta que o Brasil, embora tenha como língua oficial o português, não é um país monolíngue. Dada a sua diversidade cultural, outras línguas, embora em muito menor escala, são também faladas no Brasil, como as línguas de povos indígenas, as faladas em zonas fronteiriças com outros países da América do Sul e as faladas em regiões que concentram número significativo de imigrantes. 


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