Características do texto escrito

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Os textos verbais são aqueles cujo plano da expressão é a língua, que pode se manifestar na forma falada ou na forma escrita. Para se entender bem as características do texto escrito, há de se fazer uma comparação com o falado.

Na língua falada, a recepção é online, isto é, destinador e destinatário estão presentes no ato da comunicação, o que facilita a interação. Quando se usa a língua escrita, a recepção ocorre em momento posterior ao da produção. Isso tem como consequência que, ao contrário do que ocorre na língua falada, o destinador não pode sanar problemas de comunicação no momento em que produz o texto. Por outro lado, na língua falada, conta-se com outros recursos para transmitir sua mensagem, como os gestos, a expressão facial, a mudança no tom de voz etc. Na escrita, esses elementos não estão presentes.

A seguir apresento alguns gêneros de textos em que se faz uso da língua falada e da língua escrita.

Língua faladaLíngua escrita
conversação pessoal espontâneadiversas modalidades de carta (familiar, comercial, aberta)
conversação telefônicapanfletos e volantes distribuídos na rua
entrevistas pessoaisentrevistas em jornais e revistas
consultas médicasnotícias, artigos, editoriais em jornais e revistas
debateatas e ofícios
noticiários de rádio e tevê ao vivoescrituras públicas
aulaleis e decretos
conferênciareceitas médicas e culinárias
discursomanuais de instrução

Referindo-se às diferenças entre fala e escrita, Steven Pinker, no seu livro Guia de escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e elegância (Editora Contexto) afirma que

a fala e a escrita diferem em seus mecanismos, é claro, e essa é uma das razões pelas quais as crianças precisam lutar com a escrita: reproduzir os sons da língua com um lápis ou com o teclado requer prática. Mas a fala e a escrita diferem também de outra maneira, o que faz da escrita um desafio para toda uma vida, mesmo depois que seu funcionamento foi dominado. Falar e escrever envolvem tipos diferentes de relacionamentos humanos, e somente o que diz respeito à fala nos chega naturalmente.

Ressalto que as diferenças que apontei entre texto escrito e texto falado não devem ser tomadas como absolutas, já que pode haver atenuações, como num texto falado em uma conferência, onde não é comum interromper aquele que fala, ou num texto escrito via WhatsApp em que a resposta pode ser quase imediata. Por meio desse aplicativo, os participantes da conversação podem inserir imagens que, de certa forma, substituem as expressões faciais, os emojis, ideogramas ou smiley faces, representações de carinhas, usados nas comunicações via internet.

O fato de o plano da expressão dos textos verbais ser a língua impõe restrições para a organização do texto, uma vez que a língua se dispõe unidimensionalmente numa linha horizontal. A língua portuguesa obedece a uma ordem rígida: deve-se escrever da direita para esquerda e de cima para baixo. O plano da expressão do texto verbal é, portanto, marcado pela linearidade, cada palavra ocupa seu lugar na linha; não se pode superpor uma palavra à outra, o que significa que cada palavra seja colocada depois da outra e que cada frase venha depois de outra.

Como no texto escrito não há a presença do destinatário no momento da produção, o destinador terá de construir uma imagem mental dele. Lembre-se de que o discurso é dialógico: o eu que produz o texto se dirige sempre a um tu/você. Como no texto escrito não se tem a presença do destinatário no ato da produção, quem escreve não tem a resposta imediata de que seu texto está sendo compreendido, o que obriga a planejamento.

Apresento a primeira regra que você deve observar para produzir um texto escrito.

Todo texto verbal deve ser planejado não só relativamente ao que se vai dizer, mas também a como se vai dizer.  De nada adiantam boas ideias, se não se sabe transmiti-las de modo que o outro as compreenda.

Claro que, em muitas circunstâncias, deve-se também planejar um texto falado. É o que ocorre, por exemplo, quando se faz um pedido de emprego, quando se vai dar uma aula expositiva ou fazer uma conferência.

Planejar um texto significa proceder a escolhas dentre as diversas opções que se têm. Essas escolhas dizem respeito aos dois panos do texto: o conteúdo e a expressão. O que se vai dizer é determinado pelas circunstâncias do ato comunicativo, ou seja, o conteúdo do texto é um dado a priori, muitas vezes não se tem nem a liberdade na escolha do tema. Nas situações de exames vestibulares, Enem e concursos em geral, não é o produtor quem escolhe sobre o que vai falar. O tema é dado e não se pode fugir dele, sob pena de o texto vir a ser anulado.

No Enem de 2017, o tema da redação foi “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Das 4,72 milhões de redações corrigidas, 309.157 tiveram nota zero. A fuga do tema foi o motivo para zerar na prova de redação.

É preciso observar que um mesmo tema terá tratamento diferente dependendo de quem é o destinatário final do texto. Como uma das qualidades de um texto é a de estar adequado à situação comunicativa, o grau de abordagem do tema sofrerá variações em função daquele para quem se escreve, ou seja, um mesmo tema poderá apresentar um tratamento mais profundo ou mais superficial; além disso, tem de se proceder à escolha da variedade da língua adequada, mais monitorada ou mais informal. O tema da justiça, por exemplo, será tratado de uma maneira menos profunda numa narração escolar do que num tratado filosófico, ou do que nas alegações finais de um julgamento num tribunal.

A adequação do texto ao destinatário também implica a escolha entre um texto temático ou figurativo (ver post anterior, clicando aqui). Para leitores menos experientes, um texto figurativo costuma ser mais adequado, por ser mais concreto; para leitores mais experientes, pode-se valer de um texto temático, já que se pressupõe que esse tipo de leitor tem uma maior capacidade de fazer abstrações e lidar com conceitos. Em suma: escrever um texto é um procedimento estratégico na medida em que requer um planejamento para a utilização dos recursos de que se dispõe para atingir o objetivo a que se propõe.

A esta altura você poderá estar perguntando: como proceder em situações em que não se sabe quem é o destinatário final, como no caso dos exames e concursos? Ou em casos em que o texto não é destinado a um leitor específico, mas a um conjunto de leitores. Que estratégia usar?

O texto se caracteriza pelo dialogismo: há sempre um eu quem fala, que, ao tomar a palavra, constitui um tu/você para quem fala. Esses dois elementos da comunicação, gramaticalmente, correspondem às pessoas do discurso: 1a pessoa, o destinador, 2a pessoa, o destinatário. A 3a pessoa (ele/ela) não é um participante da comunicação, mas aquilo ou aquele (a) de que se fala, o assunto ou tema.

 Numa carta, num TCC, num relatório de trabalho, tem-se muito clara a imagem do destinatário. Ao escrever, a pessoa vai adequando o texto à imagem que tem do leitor e do tipo de relação que mantém com ele, mais formal ou menos formal, o que determinará a escolha das palavras que usará e a variedade da língua a ser usada, culta ou popular. Mas veja uma coisa: mesmo quando se conhece o destinatário, não é à pessoa física dele a quem se está escrevendo, mas à pessoa construída no e pelo discurso.

Imagine que você tenha de elaborar um trabalho escolar solicitado pela professora que avaliará, a partir dele, seu aproveitamento na disciplina que ela ministrou no semestre. O destinatário do trabalho não é a Natália da Silva Gomes, mãe das gêmeas Jéssica e Lúcia, de sete anos, casada há oito anos com o engenheiro Cláudio Gomes, mas a professora Natália, que ministra a disciplina Práticas de leitura e escrita para a turma do terceiro semestre do curso de letras da Faculdade X. O destinador não é o José Carlos Alves, torcedor do Corinthians, que pratica natação nos fins de semana, que mede 1,78m e pesa 75 quilos, mas o aluno da professora Natália, ou seja, ao produzir seu texto, você assume um papel, o de aluno(a) da instituição X. 

Como se pode ver, os parceiros na comunicação escrita não devem ser confundidos com as pessoas empíricas, aquelas que têm CPF e RG. Tanto destinador quanto destinatário são construções discursivas, de sorte que, num exame em que você tem de escrever um texto, mas não conhece o destinatário, sua estratégia consistirá em construir a imagem mental dele ao tomar a palavra.

Apresento agora a regra 2.

Todo texto verbal é produzido por um sujeito que se desdobra em dois: um enunciador, aquele quem diz, e um enunciatário, aquele para quem se diz, que correspondem, respectivamente, aos parceiros da comunicação, o destinador e o destinatário do texto. Tanto um quanto outro são construções discursivas, isto é, são criadas no e pelo texto.

Com relação a textos que não se dirigem a um destinatário específico, mas a um conjunto de leitores, como numa carta aberta, um artigo para ser publicado num jornal, um post numa rede social, você deverá construir a imagem mental de seus leitores. Quem são eles? Homens? Mulheres? Qual a faixa etária? Estudantes? Empresários? Aficionados em games? Interessados em eventos culturais ou esportivos? Mães com filhos pequenos? Que buscam no veículo em que o texto é publicado? Informação? Conselhos? Dicas? Críticas?

Tomemos como exemplo os textos publicitários. Eles são redigidos em função do grupo socioeconômico que pretendem atingir. Não se dirigem a uma pessoa em particular. Mesmo no caso de um texto que anuncia um produto que será adquirido por uma única pessoa, um imóvel, por exemplo, o texto é redigido para um conjunto de leitores, os potenciais compradores do imóvel. Uma publicidade para vender tênis a jovens se configura num texto muito diferente de uma publicidade que pretende vender planos de saúde a pessoas de mais de 50 anos, já que no caso os destinatários pertencem a grupos diferentes. Quando vemos um anúncio publicitário dizendo que o produto ou oferta é exclusivamente para você, sabemos que se trata de um recurso retórico para persuadir o destinatário construindo uma imagem dele como único, especial, privilegiado, o que evidentemente não é verdade.


Esse assunto e outros são desenvolvidos em meu livro Da leitura literária à produção de textos, publicado pela Editora Contexto. Para mais informações, clique no link abaixo.

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