Coesão

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Embora alguns autores não façam distinção entre coesão e coerência, entendo que são fatores de textualidade distintos e que, portanto, devem ser tratados separadamente. O argumento mais forte que sustenta esse ponto de vista é o fato de pertencerem a planos diferentes do texto. Enquanto a coerência diz respeito ao plano do conteúdo, a coesão é relativa ao plano da expressão, ou seja, ela se manifesta na superfície do texto. Como o plano da expressão de textos verbais é a língua, os mecanismos que garantem a coesão do texto são de natureza linguística. Definindo.

Coesão é o procedimento pelo qual os segmentos textuais, palavras, frases, parágrafos, amarram-se uns aos outros, garantindo a continuidade do texto.

A coesão, como sustentei, se manifesta no plano da expressão e diz respeito à relação que as expressões linguísticas mantêm entre si. Como o plano da expressão é linear, palavras e expressões que aparecem na superfície do texto fazem referência a outras que já apareceram ou que ainda aparecerão, amarrando umas às outras, de forma que, num texto coeso, nada fica solto, porque há uma relação solidária entre as palavras expressões. Dessa forma, a interpretação de um item depende da interpretação de outro. O sentido do texto resulta, portanto, de relações entre as partes, por isso se afirma que a coesão é um dos fatores de textualidade.

A coesão não só estabelece as articulações entre segmentos textuais como também sinaliza essas articulações, contribuindo para a legibilidade do texto, favorecendo a clareza. Embora as articulações entre segmentos se efetivem na superfície do texto, isto é, no plano da expressão, elas remetem a ligações semânticas do plano do conteúdo, por isso, embora coesão e coerência sejam coisas distintas, a primeira garante a segunda, pois a continuidade no plano da expressão manifesta a continuidade do plano do conteúdo. 

Veja o trecho que segue.

A minhoca continua a se retorcer, apesar de dividida em três pedaços. Visto o anzol com a parte que me cabe: seguro o anelídeo entre o polegar e o indicador, introduzo a fisga com a outra mão e empurro o verme para baixo até ele fazer a curva e cobrir a haste. Uma pasta com cor e cheiro de barro sai do interior. Os mosquitos estão à toda, gostaria de acender um cigarro para espantá-los, mas não quero contaminar a isca (BOTTINI, Ettore. Uns contos. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 42).

O trecho começa pela apresentação de um item lexical, a minhoca. Trata-se de uma figura, porque, como vimos, trata-se de palavra que remete a um referente do mundo natural, um animal anelídeo, de hábitos terrestres, cavador de túneis, e que serve de alimento a outros animais.

Na segunda frase, aparece a palavra anelídeo, referindo-se ao mesmo item lexical (minhoca = anelídeo). Substitui-se o animal (minhoca) pela espécie (anelídeo), ou seja, o particular pelo geral. Ainda na mesma frase, minhoca é retomada por verme (minhoca = verme). Aqui, a substituição não se deu por uma palavra técnica e precisa, anelídeo, mas por um termo comum e pouco preciso, verme, palavra usada na linguagem comum para designar imprecisamente animais alongados e de corpo mole.

Ao substituir minhoca por anelídeo, o autor se valeu de uma metonímia, substituiu o particular pelo geral. Ao substituir minhoca por verme, valeu-se de uma metáfora, a substituição se deu por uma relação de semelhança (corpo mole e alongado). Minhoca, anelídeo e verme são palavras lexicais porque fazem referência a elementos do mundo natural. A substituição de minhoca por anelídeo e por verme foi possível porque elas guardam entre si relações de sentido.  

Nessa segunda frase ainda, o termo verme, que substituiu minhoca, é retomado por ele, que não é item lexical, isto é, não aponta para um referente do mundo natural, ao contrário de minhoca, anelídeo e verme. Trata-se de um item gramatical, no caso um pronome de terceira pessoa. Sua função é substituir um item lexical, estabelecendo com ele uma relação de identidade. Trata-se de um anafórico. O mesmo ocorre no trecho “…acender um cigarro para espantá-los…”em que a forma pronominal los retoma mosquitos.

A retomada de um palavra por outra(s), além de garantir a continuidade do texto, mantém o objeto de discurso, no caso a minhoca, em foco, configurando um texto que se mostra para leitor como coerente.

No exemplo apresentado, o mecanismo de coesão consistiu na substituição de uma palavra por outra, seja por palavra lexical (minhoca = anelídeo =verme), ou por palavra gramatical (pronomes eles e os). Ocorre coesão lexical, quando o termo que substitui outro é palavra lexical (substantivo, adjetivo, verbo) e que ocorre coesão gramatical, quando a palavra que substitui outra é uma palavra gramatical (pronome, advérbio).

A substituição de uma palavra por outra é uma das formas de coesão. Existem outras das quais tratarei no próximo post. Por ora, é importante saber que substituir uma palavra por outra, estabelece uma identidade entre elementos do texto. Como deve ter ficado claro pelo comentário ao exemplo, um mesmo referente, pode ser renomeado por expressões linguísticas distintas, por isso se diz que, nesses casos, a coesão se dá por correferência. Veja.

            História e Lenda 

É provável que o peixe-boi tenha tido sua origem há mais ou menos 45 milhões de anos. Desde os primeiros contatos com o homem, este mamífero de águas doces e salgadas despertou muito interesse. O tamanho impressionava e levava os pescadores a temerem o animal.

Disponível em http://natureplanet.blogspot.com/2007/08/projeto-peixe-boi.html Acesso em 18 dez. 2019.

 No trecho, introduz-se o item lexical peixe-boi que é retomado por mamífero e animal, acrescentando novas informações ao item apresentado. Há uma hierarquia entre os termos: peixe-boi é o mais específico e animal é o mais genérico. Entre ambos, há um termo médio, mamífero, que é mais geral em relação a peixe-boi e mais específico em relação a animal.        

Nos casos vistos, os termos usados para substituir a palavra a que se refere, estabelecendo entre elas relação de identidade foram palavras lexicais (substantivos). Em ambos os casos, temos coesão lexical.

Quando um item do texto (lexical ou gramatical) retoma item anteriormente expresso, estabelecendo com ele identidade, temos o que se denomina anáfora. O termo substituído denomina-se antecedente e o termo que o substitui é chamado de anafórico.

Nos exemplos de coesão lexical vistos até aqui, o termo anafórico guarda uma relação de sentido com o termo que substitui. As relações de sentido entre itens lexicais podem ser variadas, as mais comuns são por sinonímia, por hiperonímia, por hiponímia, ou mesmo por palavras de sentido muito genérico, como fato, coisa, negócio, ideia etc. como nos exemplos que seguem:

A notícia do incêndio foi dada em edição extra pelas emissoras de tevê. O fato gerou muito muita comoção.

Pedro comprou um aparelho que funciona a partir de um comendo de voz. A coisa funciona assim: você fala para ligar a tevê e em segundo ela já está ligada.

Nesse exemplos, fato e coisa, palavras de sentido genérico, retomam, respectivamente, a notícia do incêndio e um aparelho que funciona a partir de um comando de voz, estabelecendo com os antecedentes relação de identidade. Funcionam, portanto, como elementos de coesão textual.

No próximo post, retomarei o assunto para tratar de outras formas de coesão.

Este assunto é tratado em nosso livro Práticas de leitura e escrita, publicado pela Editora Saraiva.

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