Conto popular

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O conto popular se caracteriza inicialmente pela sua expressão, que é oral. Mas a distinção entre o conto oral e escrito não se restringe à expressão.

A escrita não deve ser entendida como uma mera reprodução da fala. Língua escrita e língua falada são sistemas semióticos distintos. A língua falada, tanto no que se refere à produção quanto à reprodução, se faz valer de signos que não fazem parte da língua escrita, tais como a entoação, a gesticulação, expressões faciais, o riso, etc. Acrescento ainda que o conto oral e o conto escrito são produtos de culturas diferentes. Portanto, a compreensão de um conto oral deve levar em conta que ele é manifestação de uma cultura marcada pela oralidade.

O conto oral, além de mais antigo que o escrito, costuma ser mais simples. Por ser manifestação de oralidade, sua narração, que é percebida pela audição, costuma ter um caráter performático, isto é, a fala do narrador se faz acompanhar por gestos, mudanças no tom e ritmo da voz, expressões faciais de modo que o narrador, além de narrar, interpreta o conto, de modo a manter o auditório sempre atento. O adjetivo popular refere-se a povo, o que já nos permite vislumbrar que o conto oral era considerado patrimônio coletivo.

Esse tipo de conto era transmitido oralmente de geração em geração, praticamente sem alterações. Alguns ganharam, posteriormente, forma escrita. Como gênero antigo, circulava em sociedades não letradas. Narrador e auditório eram formados por pessoas analfabetas de todas as idades.

No filme, A árvore dos tamancos, dirigido por Ermanno Olmi, há uma cena muito bonita em que um camponês reúne em torno de si habitantes da comunidade local e conta-lhes uma história, cheia de emoções e suspenses. O curioso é que, mesmo o auditório já conhecendo a história, ainda se emociona e se assusta com a narração.

Outra característica do conto oral é sua autoria. Enquanto no conto escrito, sabemos quem foi o autor (Tchekhov, Maupassant, Kafka, Hemingway, Machado de Assis, Guimarães Rosa, etc.), a autoria dos contos orais é desconhecida e se perde no tempo. O conto oral seria, segundo André Jolles (1976), uma forma simples, um tipo de narrativa que se mantém inalterada através dos tempos.

O conto oral está na origem do conto literário. Jolles (1976) sustenta que o conto literário surge no momento em que os irmãos Grimm, em 1812, reuniram uma série de contos da tradição oral e os publicaram num volume denominado Contos para crianças e família.

Transcrevo a seguir um conto recolhido pelos irmãos Grimm, ressaltando que, por estar escrito, já não é mais um conto oral. Note que a recepção do conto se dará pela leitura e não pela audição. Além disso, ao passarem os contos orais para a forma escrita, os irmãos Grimm, procederam a algumas alterações, uniformizando o estilo, e supressões, eliminando passagens que tivessem cunho sexual, uma vez que os leitores desses contos eram majoritariamente crianças.

A mão com a faca

Era uma vez uma menina que tinha três irmãos. A mãe gostava mais dos irmãos do que dela e a tratava muito mal. Ela tinha de trabalhar duro, sair todos os dias bem cedo, para cavar em chão de terra batida e colher turfa, que usavam para acender o forno para cozinhar e para a calefação. Para fazer o árduo serviço, deram a ela uma faca, cega e sem ponta.

Mas a menina era amiga de um elfo que era apaixonado por ela e morava numa colina perto da casa de sua mãe. Toda vez que a menina passava pela colina, ele estendia a mão para fora da rocha e lhe entregava uma faca bem afiada, que tinha uma força extraordinária, capaz de cortar qualquer coisa. Com essa faca, ela conseguia cortar bem rápido a quantidade de turfa necessária e voltava feliz para casa. Na volta, ela batia duas vezes na rocha e a mão aparecia para receber a faca de volta.

Mas, quando a mãe percebeu que ela estava trazendo a turfa tão rápido e com muita facilidade, disse para os irmãos que desconfiava que alguém a estivesse ajudando, pois do contrário não seria possível. Então os irmãos foram atrás dela e, quando viram a menina recebendo a faca mágica, trataram de arrancá-la à força. No caminho de volta, bateram numa rocha igual sua irmã sempre fazia e, quando o bom elfo estendeu a mão, eles deceparam-na com sua própria faca. O elfo recolheu o braço ensanguentado e, pensando que a amada o tinha traído e cortado seu braço de propósito, nunca mais foi visto.

GRIMM; GRIMM 2012, p. 57-59.

É possível reconhecer nesse conto algumas características existentes em outros do mesmo gênero. O início Era uma vez, que situa a narrativa num tempo passado indefinido; o elemento mágico, a faca afiada; o elemento maravilhoso, o elfo; a personagem que representa o mal, a mãe; a criança desprezada, etc.

Nos contos da tradição oral, o elemento maravilhoso (ogros, fadas, bruxas, elfos, gnomos, etc.) agrega-se ao conto naturalmente. Isso quer dizer que o acontecimento maravilhoso não desperta estranheza alguma. Nesse tipo de conto, o leitor / ouvinte considera verossímil um caçador tirar Chapeuzinho Vermelho viva da barriga do lobo, o príncipe subir em uma torre alta agarrando-se nos cabelos da moça, um sapo virar príncipe, etc.

No conto maravilhoso, não apenas o tempo é indeterminado. Personagens e espaço também o são. Note que, em contos desse tipo, as personagens não são designadas por um nome próprio, mas pelo que fazem, ou por aquilo que são: o príncipe, o rei, o pescador, o menino, etc. O espaço em que se desenrolam as ações também não é determinado, ou determinado vagamente: na floresta, num bosque, etc. A seguir, apresento o início do conto A gata borralheira, recolhido pelos Irmãos Grimm.

Era uma vez um homem rico que viveu feliz com sua mulher por muito tempo e juntos tiveram uma única filha. Um dia a mulher adoeceu e, quando sentiu o fim se aproximar, chamou a filha e disse: “Querida criança, vou ter de deixá-la, mas quando eu estiver no céu, sempre olharei por você. Plante uma árvore sobre o meu túmulo e, toda vez que desejar alguma coisa, balance a árvore que seu desejo será atendido, e quando estiver em perigo mandarei ajuda do céu. Continue boa e piedosa”. Dito isto, fechou os olhos e morreu. A menina chorou e plantou a árvore sobre o túmulo, mas não precisou regá-la porque suas lágrimas já bastavam.

GRIMM; GRIMM, 2012, p. 116.

Além do tempo indeterminado (Era uma vez), não há qualquer referência à espacialização da narrativa. Em síntese: não se sabe quando e onde ocorreram os fatos narrados. Quanto às personagens, não há qualquer individuação por nome próprio: um homem rico, a mulher, a filha. Note que, quando a mãe se dirige à filha, não a chama pelo nome, mas por “querida criança”.

Vladimir Propp, um pesquisador russo, analisou contos populares russos e escreveu uma obra muito importante para os estudos literários, narratológicos e semióticos, Morfologia do conto maravilhoso. Nele, Propp nos mostra que os contos maravilhosos russos têm uma mesma estrutura, ou seja, existem algumas ações que são constantes a que ele denominou de funções. Na teoria de Propp, são sete classes de personagens, correspondentes a sete esferas de ação: o agressor (o antagonista, aquele que faz o mal), o doador (aquele que dá o objeto mágico ao herói), o auxiliar (aquele que ajuda o herói), a princesa e o pai (que não tem de ser obrigatoriamente o rei), o mandante (aquele que manda), o herói e o falso herói. As funções, que são sempre as mesmas, podem ser exercidas por personagens diferentes em cada conto.

Esses ensinamentos de Propp serviram como fundamento para uma teoria semiótica, que mostra que todas as narrativas apresentam um certo número de funções, que são exercidas por actantes, que são figurativizados em atores (personagens), podendo haver sincretismo entre actantes e atores, ou seja, uma mesma personagem pode exercer várias funções actanciais e um mesmo actante pode ser representado por mais de uma personagem. A teoria semiótica tem a vantagem de poder ser aplicada a qualquer conto e não apenas aos maravilhosos.

Ao contrário do que muitos acreditam, os contos da tradição oral não terminam sempre com a punição do mal e a glorificação do bem. Em A mão com a faca, não só a menina não consegue se ver livre definitivamente da maldade da mãe, como o próprio elfo, o ser maravilhoso, perde a mão e a menina a quem ama. O desfecho dos contos da tradição oral sempre apresenta uma sanção, ou seja, ao final do conto verifica-se se o herói cumpriu ou não o que lhe cabia e lhe é aplicada uma sanção positiva ou negativa.

Encerrando este artigo, chamo a atenção para o fato de que muitos contos literários retomam contos da tradição oral. É o caso de Fita verde no cabelo, de Guimarães Rosa, que retoma a história de Chapeuzinho Vermelho. O escritor moçambicano Mia Couto busca a matéria para seus contos na tradição oral de seu povo. Sobre a importância do conto de tradição oral, Walter Benjamim (1994, p. 215) afirma que “[O conto maravilhoso] é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças porque foi outrora o primeiro da humanidade, continua a viver secretamente na narrativa. O primeiro e verdadeiro narrador é e permanece sendo o narrador dos contos maravilhosos“.

Sobre o gênero conto e suas diversas manifestações, escrevi com a querida Jessyca Pacheco o livro O conto na sala de aula, publicado pela Editora InterSaberes. Para mais informações sobre esse livro, clique no link abaixo.

REFERÊNCIAS

BENJAMIM, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. de Sergio Paulo Rouanet. 7a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197 – 221.

GRIMM, J.; GRIMM, W. Contos maravilhosos infantis e domésticos. Trad. de Cristine Röhrig. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

JOLLES, A. Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976.

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