Ensino de literatura e novas tecnologias

Tempo de leitura: 12 minutos

A história – e nunca devemos perder a dimensão histórica dos acontecimentos – nos mostra  que o novo nem sempre é novidade e que o tradicional nem sempre é velho. Novas tecnologias são sempre sedutoras. As pessoas se sentem narcotizadas por elas e isso pode levá-las a perder a dimensão histórica dos acontecimentos, mas não é necessário tapar os ouvidos com cera para não se deixar entorpecer por elas; pelo contrário, é preciso estar antenado com as novas tecnologias para compreendê-las para fazer o melhor uso delas.

Tenho notado que muita gente hoje vive no que se pode chamar de um presente contínuo. As novas gerações, bem mais do que as anteriores, vivem esse nesse presente contínuo. Tudo é presente; o passado é apagado. Um tuíte, um post no Facebook, uma mensagem via WhatsApp (já chamado simplesmente de Zap) acabam tendo duração efêmera: a duratividade cede lugar à pontualidade, ou seja, o princípio coincide com o fim. Em seguida a um tuíte, um post, um Zap, logo se tem um novo tuíte, um novo post, um novo Zap, que instauram outro tópico, fazendo com que os anteriores caiam no esquecimento. Repararam como grupos, políticos e influenciadores digitais combatem posts e tuítes que lhes imputam alguma acusação? A estratégia é sempre a mesma: pautando outro tema. Um influenciador acusado de assédio sexual “defende-se” por meio de um post ou tuíte em que levanta outro tema, por exemplo, que ficou noivo ou que a mulher está grávida. Assim, se estabelece a impermanência, a fugacidade, a descontinuidade.

Pode-se  argumentar que sempre foi assim. Em certos termos, é verdade. No entanto, o que as novas tecnologias trouxeram foi que os efeitos disso passaram a ser devastadores, não só pelo número de pessoas que atinge mas também pela velocidade com que os textos circulam, atingindo milhões de pessoas em minutos. Não satisfeitas, as pessoas buscam rapidez ainda maior nas tecnologias digitais. Muita gente já usa o modo acelerado no WhatsApp e de outros aplicativos que contam com esse recurso. Tudo acontece e se desmancha muito rapidamente. É o presente contínuo de que falei.

Poderia continuar a discussão alertando para o grau de profundidade de muitos textos que circulam nas redes. Qualquer texto analítico cuja leitura demande algo em torno de dez minutos tem enorme chance de ser descartado, assim como um vídeo curto e engraçadinho de um minuto terá milhões de visualizações a mais do que um texto escrito cuja leitura demande 15 minutos. Entre um conto de Machado, de Clarice Lispector, de Tchekhov e um reels de 15 segundos, fica-se com o reels.

A essa altura, leitores deste post podem estar pensando que esse é um discurso de uma pessoa velha, não antenada com as novas tecnologias, que não vê evolução nos meios de circulação de textos e que, por isso, se põem contra as novas tecnologias.

Nada disso é verdade: uso a internet para trabalhar, posto em redes sociais, uso o Instagram e o Facebook, assisto a vídeos no Youtube e uso este blogue hospedado na internet para publicar textos. A maior parte das pesquisas que faço é pela internet, o que me obriga a ter planos de dados cada vez mais rápidos, para que os downloads e uploads sejam feitos em alta velocidade. Sou obrigado a ter planos de armazenamento nas nuvens de alguns terabytes. Paralelamente a isso, sou um sujeito histórico. Sou um ser presente, um homem do século 21, mas sou forjado historicamente. O meu presente contínuo tem muito a ver com o meu passado.

Toda nova tecnologia traz um impacto imediato. Assim foi com surgimento da televisão (achavam que ela acabaria com rádio). No Fedro, uma obra de Platão, há uma discussão  sobre o fato de que uma nova tecnologia (a escrita) levaria os homens à perda da memória.

As novas tecnologias nos seduzem, algumas se perpetuam (a escrita, por exemplo); outras são efêmeras. Ninguém mais armazena dados em disquetes, ou ouve músicas em CDs.

Tratarei em seguida de tecnologias mais antigas que permitiram que os textos literários (e os textos em geral) chegassem até nós.

Essas tecnologias também sofreram mudanças (não tão rápidas como as digitais) e determinaram a forma com passamos a se relacionar com os textos. Lembrando sempre que as mudanças nas práticas de leitura são muito mais vagarosas que as tecnológicas. Hoje, as pessoas leem em tecnologias novas (smarthphones, tablets, Kindle, etc.), mas as práticas de leitura ainda são as do livro impresso. A exceção fica por conta de textos que contêm hiperlinks. Acrescento que é comum que o que lemos nas telas sejam uma versão digitalizada de texto impresso. No fundo, mudou o suporte.

Destaco, a seguir, mudanças tecnológicas por que passaram os textos literários.

  • Antes da escrita, os textos circulavam oralmente; ou seja, a primeira e mais revolução tecnológica que possibilitou a circulação e a preservação dos textos foi a invenção da escrita.
  • Com a escrita, os textos literários passaram a ser “gravados” em algum suporte, o que contribuiu para  preservação deles. Sem a escrita não teríamos a literatura que temos hoje, já que ela é predominantemente escrita. A palavra literatura tem na sua origem a palavra letra. Os suportes da escrita foram mudando com o tempo.
  • Primeiro foram inscrições nas pedras (isso era um problema porque as inscrições não eram transportáveis). Para usar um termo da era digital: não havia portabilidade. Tinha de se ir aonde o texto estava; o texto não vinha ao leitor.
  • Depois passaram a gravar os textos em tabuletas de argila. Que facilidade! Chegamos a era da portabilidade, os textos viajavam com as pessoas, como ocorre hoje, pois armazenamos contos, romances, poemas em e-books, no Kindle, em arquivos digitais que carregamos conosco em smarthphones, tablets e notebooks.
  • Depois passaram a ser reproduzidos em rolos de pergaminho (vejam que maravilha, lia-se como hoje se faz nas telas de computador, rolando o texto de cima para baixo), mas isso tinha um defeito: num rolo, ao contrário de um HD ou de uma nuvem (Dropbox, OneDrive, Google Drive, ICloud, etc.), cabe muito pouco texto e, para se ler, a pessoa tinha de segurar o rolo com as duas mãos. Enfim, não se podia ler e escrever ao mesmo tempo.
  • Depois os textos passaram a ser gravados em folhas dobradas de pergaminho ou papel. Surgem os códex, um bisavô do livro atual. Uma grande vantagem era que, com o códex, liberavam-se as mãos. As pessoas podiam ler e fazer anotações enquanto liam. Com o códex, podiam ser usados os dois lados do pergaminho, o que não ocorria no rolo. O códex permitiu ainda que se dividisse a obra em capítulos. A separação de palavras no texto (antes se emendava tudo) permitiu a leitura silenciosa; surgiram os sinais de pontuação. Essas mudanças tecnológicas possibilitaram que se lesse mais rápido.
  • Depois os códex se sofisticaram e se transformaram nos livros como os conhecemos hoje, com capa e miolo de folhas de papel encadernadas. A tecnologia que permitiu a passagem do códex, um volume enorme, para o livro moderno foi dobrar a folha mais vezes: primeiro se dobrava em quatro, depois em oito. Atualmente se dobra a folha 16 vezes, formando os cadernos que depois são costurados e que depois recebem uma capa. Essa é tecnologia que ainda se usa para a confecção de livros impressos.
  • Depois os livros de papel passaram para o formato digital e podem ser lidos em telas de computador e armazenados em nuvem, resolvendo o problema de espaço. Todos sabem que livros de papel ocupam muito e espaço (e ainda costumam atrair traças).

As mudanças de suporte implicaram mudanças na maneira de ler. Na passagem da tecnologia do rolo para a do códex alterou-se a posição em que o leitor lia. Para ler o rolo, ficava-se em pé; com o códex podia-se ler sentado. A leitura no rolo era feita em voz alta; o códex propiciou a leitura silenciosa; a quantidade de texto que cabia num rolo era pequena. No códex, cabia muito mais texto.

Com a era digital, assistimos a uma certa democratização da literatura, já que muitas obras literárias, em especial as que estão em domínio público, passaram a ser acessíveis a muitas pessoas. Mas é importante lembrar que uma nova tecnologia não torna necessariamente a antiga obsoleta. Os automóveis, apesar de mais rápidos, não substituíram a bicicleta.

Retomo algo que disse logo no começo deste texto. Devemos estar atentos ao presente e aproveitá-lo ao máximo, mas sem perder de vista que o presente logo será passado, por isso jamais devemos de deixar de perder a perspectiva histórica. Aí é que entra a literatura. Por meio dela, temos acesso ao perene, ao universal, a valores humanos – diria: demasiadamente humanos, para usar uma expressão de Nietzsche.

A boa literatura nos põe em contato com valores que independem de tecnologias novas ou avançadas. O escritor argentino Jorge Luis Borges, referindo-se ao livro Dom Quixote de Cervantes diz:

“Poderiam perder-se todos os exemplares do Quixote, em castelhano e nas traduções; poderiam perder-se todos, mas a figura de Dom Quixote já é parte da memória da humanidade.”

Destaco que ensino de literatura e novas tecnologias não são excludentes. As novas tecnologias trouxeram novos suportes para a literatura, facilitando o acesso a ela e ampliando seu público. No entanto, não trouxeram ainda novas formas de ler o texto literário: na leitura de um romance, por exemplo, obedecem-se às mesmas estratégias, seja ela feita num volume de folhas de papel ou na tela do computador. No ensino de literatura, não podemos nunca esquecer que o foco é a literatura e não a tecnologia. Inverter isso é achar que o suporte é mais importante que o texto que ele veicula. Lamentavelmente, tenho visto pessoas entorpecidas acharem isso.

O cuidado deve ser o seguinte: não é porque se manifestam num mesmo suporte que um texto literário deve ser lido como um tuíte. Na leitura literária, mobilizam-se estratégias complexas. Por exemplo, ao contrário do que se faz com textos em linguagem ordinária, interessa saber não apenas o que o texto literário diz, mas também como diz. Em outras palavras, de que estratégias se valeu o autor para construir o sentido pretendido. Nos textos literários, o plano da expressão muitas vezes é constitutivo do sentido. Em textos narrativos, a leitura deve se orientar não apenas para o que é narrado (a fábula, a história), mas também e – principalmente como a história é narrada (o enredo). A pergunta que deve orientar a leitura de um romance, de um conto, de uma novela não é E depois?, mas Por quê? Em textos narrativos, menos importa o quê do que o como. O texto literário, ao contrário de um sinal de trânsito ou de uma receita médica, comporta várias leituras, apresenta vazios, que o leitor tem de preencher, é um texto polissêmico.

Por fim, acrescento que um texto literário é um texto figurativo. Todo texto se constrói sobre temas, mas nos textos literários os temas são revestidos por figuras que dão concretude ao tema. A leitura de um texto literário implica descobrir os temas que essas figuras revestem: que temas figuras como lobo, cordeiro, agulha e linha revestem (estou me referindo a figuras presentes na conhecida fábula e no conto Um apólogo, de Machado de Assis). No conto Uma galinha, de Clarice Lispector (“Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã), encontramos figuras (ver post temas e figuras, clicando aqui) como: galinha, prematuro, cozinha, velha mãe, jovem parturiente, esquentando seu filho, rainha da casa… Que temas essas figuras revestem? De que fala o conto? Se alguém ler o conto como a história de uma ave galiforme, lamentavelmente não entendeu nada, pois não captou o tema, isto é, aquilo de que a autora trata no texto. O conto Uma galinha trata de temas como a maternidade, a mulher mãe, seu papel na família…

A literatura é essencial, pois é por meio dela que escapamos do presente contínuo de que falei no começo; pela literatura nos inserimos na história e nos afirmamos como sujeitos e pela literatura podemos tornar nossa vida mais ampla porque ela nos permite viver situações, ter experiências, que na vida real não conseguimos ter.


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