Essas brasileiras guerreiras

Tempo de leitura: 3 minutos

Li recomendo o livro “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas”, de Maria José Silveira, Globo Livros, 318 p. Lançado em 2002, depois da enorme repercussão na Europa e nos EUA, a Globo Livros relançou-o agora em 2019 com um capítulo extra.

A narrativa, cujas protagonistas são sempre mulheres, percorre mais de 500 anos, começando na véspera do dia do descobrimento do Brasil com o nascimento da índia tupiniquim Inaiá e se estende até momentos mais recentes de nossa história, como as manifestações de 2013 e o impechement de Dilma Rouseff , percorrendo momentos decisivos de nossa história, como a escravidão, os bandeirantes, a República, Juscelino e Brasília, a ditadura militar, sempre do ponto de vista das mulheres.

Os homens aparecem sim, mas nunca são os protagonistas da história. Há passagens em que a narração do relacionamento de mulheres brasileiras (índias, mamelucas, negras, cafuzas) com o homem branco são impossíveis de serem lidas sem um sentimento de indignação e revolta. Mulheres que se contrapunham à vontade do marido, eram simplesmente encarceradas em conventos, sob o pretexto de apresentarem distúrbios mentais (“essa maneira de se livrar da mulher era usada na época”). Num determinado trecho, a autora diz sobre a relação entre a personagem Clara Joaquina e seu marido Diogo Ambrósio.

“Quando lhe ocorria [a Diogo] alguma vontade, puxava Clara Joaquina de qualquer jeito, empurrava contra a parede, levantava o mínimo possível suas saias, e, sem o menor interesse em ver uma brecha que fosse de seu corpo, empurrava alguma coisa dentro dela e resfolegava e resfolegava e pronto. Tudo acabava quase imediatamente, e ele, sem sequer pensar em dirigir os olhos para o lado dela, endireitava de novo as calças, puxava a camisa e saía do quarto, deixando-a lá, de saias um pouquinho só amarfanhadas, encostada na parede”.

Mas não pensem que essas mulheres brasileiras, mães das mães das nossas mães, muitas criadas por negras escravas, eram fracas e submissas; ao contrário,

[…] as mulheres que povoaram esta terra nos primeiros dois e três séculos, que foram para as lonjuras do sertão, viver no mato no país que começava, não poderiam ser fracas e submissas como muitos gostariam de pintá-las. Tinham de se virar, do contrário não sobreviveriam nas condições inóspitas em que viveram, muitas vezes passando longos meses sem o marido em casa, tendo de se defender de muita coisa e criar suas próprias condições de sobrevivência.”

A história dessas mulheres vai mostrando a formação da nossa nacionalidade, fruto da miscigenação com povos os mais diversos. À medida que a narrativa avança no tempo, o leitor vê entrar em cena descendentes de holandeses, alemães, italianos e libaneses que engravidaram as descendentes na tupiniquim Inaiá, essa mãe quase mitológica, deixando claro que todos somos mestiços.

O estilo leve, bem-humorado e poético em diversas passagens contribui para tornar a leitura deliciosa.

Como a narrativa, cobre mais de quinhentos anos de história de uma “família”, é natural que o leitor em algum momento não se lembre de quem determinada personagem é filha. Se isso ocorrer, basta voltar às primeiras páginas do livro em que há uma linha do tempo com o nome das principais personagens.


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