Hipertexto

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Empregamos aqui o termo hipertexto para definir um documento digital, não sequencial, não linear e não hierarquizado que se subdivide, possibilitando, por meio de links, acesso instantâneo a outros textos, não necessariamente verbais. Chamamos de links os nós ou elos que possibilitam ao navegador ir de um texto a outro por meio de um clique com o mouse ou de um simples toque em uma tela do tipo touchscreen, como as de tablets e smartphones, estabelecendo relações semânticas entre textos. Nos parágrafos seguintes, apresentamos outras definições de hipertexto.

Leão (2005, p. 15) define hipertexto como “um documento digital composto por diferentes blocos de informações interconectadas. Essas informações são amarradas por meio de elos associativos, os links. Os links permitem que o usuário avance em sua leitura na ordem que desejar”.

Portanto, os links estabelecem ligações eletrônicas de blocos de informações, denominadas lexias, que podem ser formadas por textos, imagens, vídeos, sons, etc. Como os hipertextos não são lineares e hierarquizados, o caminho da leitura não é dado previamente; ao se fazerem escolhas, o percurso é feito na medida em que se lê.

Para Elias (2005), “o hipertexto não é feito para ser lido do começo ao fim, mas, sim, por meio de buscas, descobertas e escolhas, destacando que a sua estrutura flexível e o acesso não linear permitem buscas divergentes por caminhos múltiplos no interior do hipertexto”. Os hipertextos podem ainda apresentar elasticidade, ou seja, o usuário pode expandir o texto que está lendo a fim de obter mais informações. Em dicionários eletrônicos, como a versão do Aurélio, o leitor pode expandir o verbete para ver abonações relativas ao verbete consultado.

Para Koch (2005, p. 83), “o hipertexto é também uma forma de estruturação textual que faz o leitor, simultaneamente, um coautor do texto, oferecendo-lhe a possibilidade de opção entre caminhos diversificados, de modo a permitir diferentes níveis de desenvolvimento e aprofundamento de um tema”.

A estrutura do hipertexto é reticular. Em decorrência dessa arquitetura, ele é acêntrico, isto é, não tem um centro, como demonstro na Figura abaixo. A passagem de um bloco de texto (lexia) a outro se faz à medida em que se percorre o hipertexto, admitindo-se retornos por meio do comando back.

Estrutura do hipertexto

Se compete ao autor, no processo de escritura, estabelecer os links, cabe ao leitor acessá-los ou não. Vale observar que os hipertextos podem ser construtivos ou exploratórios. Segundo Rissi (2009), os exploratórios não admitem a intervenção do leitor/usuário, que não pode participar da construção ou da alteração dos nós da rede – a autoria original é mantida. Exemplo desse tipo de hipertexto são os sites de notícias. Nos hipertextos construtivos é possível a alteração do texto original, tornando-se o leitor um coautor do texto. Nesse tipo de hipertexto, podemos ter um problema com implicações até mesmo no âmbito jurídico, com relação à propriedade intelectual – a autoria. Se um texto pode ser alterado on-line por seus leitores, temos que esse texto é aberto por não ter fim e também que não tem um autor identificável. Na verdade, com o hipertexto construtivo é quebrada a dicotomia autor/leitor, surgindo o leitor-autor, que é ao mesmo tempo produtor e consumidor da “mercadoria” texto. Rissi (2009) cita ainda a classificação de hipertextos dada por Marcushi (2008). Segundo esse linguista, os hipertextos podem ser:

  1. só de leitura (CD-ROM, e-books, enciclopédias, etc.): admitem apenas links intratextuais;
  2. da web (homepages, sites de consulta, etc.): apresentam links intertextuais que os ligam a textos diversos;
  3. participativos (jogos on-line, sites de compra, etc.): apresentam links que os ligam a objetivos específicos do leitor usuário.

Se com a internet podemos ter uma leitura não linear, fragmentada, não podemos nos esquecer de que há livros impressos que permitem uma leitura não linear, como O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, que pode ser lido sequencialmente, capítulo após capítulo, ou não sequencialmente, numa ordem outra daquela estabelecida pelo autor. Carlos Reis afirmou certa vez que Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, obra publicada em 1846, apresenta características que permitem sua leitura como hipertexto.

A literatura sempre foi um campo fértil para experimentações com o texto, possibilitando formas de leitura não convencionais. Além do citado romance de Cortázar, um poema como “Un coup de dés” (Um lance de dados), de Mallarmé, publicado em 1897, não só rompe com a linearidade da leitura, como dá significação aos recursos tipográficos e à organização gráfica do texto, podendo ser considerado um precursor da poesia concreta.

Por outro lado, os livros impressos também apresentam elementos hipertextuais, como notas de rodapé, gráficos e tabelas, o que permite a leitura intertextual. No romance O guarani, José de Alencar insere inúmeras notas de rodapé a fim de elucidar o sentido de alguns vocábulos por ele utilizados. Muitas editoras elaboram edições comentadas de obras, com várias notas a fim de esclarecer o texto para o leitor. Esses são exemplos de que, mesmo num livro impresso, há elementos de hipertexto que possibilitam ao leitor navegar pelo texto. Nesse caso, os links estabelecidos pelo autor ou pelo editor são indicados por números ou asteriscos. Mesmo que não haja a indicação de links, o leitor pode criá-los por conta própria, detendo-se, por exemplo, numa palavra para, a partir dela, navegar por outros textos impressos ou não, de modo a transformar o texto num hipertexto. Evidentemente, na leitura de um texto on-line esse procedimento é mais rápido, pois basta ao leitor selecionar o termo com o qual pretende estabelecer um link e ir para um buscador, uma enciclopédia ou um dicionário on-line.

Em certas narrativas literárias, embora a leitura seja feita sequencialmente, a história deve ser montada pelo leitor, a partir de “janelas” abertas pelo autor, dispersas pelo texto. Num romance como Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, a história é montada pelo leitor a partir das vozes de diferentes narradores que relatam episódios ocorridos, cabendo ao leitor fazer os links entre os episódios narrados. Em Aos 7 e aos 40, João Anzanello Carrascoza, numa narrativa ousada, intercala os capítulos de seu romance, dando voz ao narrador em dois momentos diferentes de sua vida (aos 7 e aos 40); compete ao leitor, para usar uma expressão machadiana, juntar essas duas pontas da vida.

Devemos atentar para o fato de que todo texto (e o literário mais ainda) admite múltiplas leituras, já que o sentido é sempre constituído pelo leitor num processo interativo com o autor e  mediado pelo (hiper)texto. Basta que se observem as diversas leituras propostas para um mesmo texto, como no caso da tragédia grega Édipo rei, de Sófocles, para ficar num único exemplo. Se Freud fez dela uma leitura psicanalítica, sob o enfoque do incesto, Foucault a leu sob o prisma das práticas sociais e da questão da justiça, Levi-Strauss fez uma leitura antropológica desse mito, observando as relações de parentesco. Se você leu essa tragédia, deve ter feito a sua leitura particular, que não foi necessariamente a feita por outros leitores, pois a leitura se faz a partir dos conhecimentos prévios que cada um detém e tais conhecimentos variam de pessoa para pessoa, o que acarreta leituras diferentes de um mesmo texto.

Essa pluralidade de leituras, evidentemente, não é exclusiva de textos verbais. Um filme, uma peça de teatro, uma pintura também podem comportar várias leituras. No livro Convite à filosofia, Marilena Chaui (2003) fala do filme Matrix a partir de uma perspectiva filosófica. Esse mesmo filme é comentado por Lucia Santaella (2004) no livro Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo, sob a ótica da polaridade real-virtual. Se você assistiu ao filme, pode ter feito uma leitura diversa das autoras citadas.

Santaella (2004) assinala que, historicamente, podemos observar a existência de três tipos de leitores, que diferem um do outro em decorrência dos modelos cognitivos de leitura: o leitor contemplativo, o leitor movente e o leitor imersivo. O primeiro é o do livro impresso e surge no Renascimento; o segundo é o do mundo em movimento e surge com a Revolução Industrial e o aparecimento dos grandes centros urbanos; o terceiro é o leitor que surge nas infovias do ciberespaço e que navega não sequencialmente por meio de links. Ressalta a autora, entretanto, que esses tipos de leitor, embora se sucedam historicamente, não se excluem.

A internet abre caminho não só para mudanças nas práticas de leitura como também para práticas de produção textual. Quanto à produção de textos, um aspecto relevante diz respeito à concepção de autoria, dando ensejo à autoria compartilhada, socializando a função de autor – um mesmo texto apresenta diversos autores, às vezes não identificáveis. É por essa razão que a consulta na rede deve ser feita com muito cuidado, uma vez que podemos nos deparar com informações incorretas. Há um ditado segundo o qual o papel aceita tudo. Com relação à internet, podemos afirmar que ela aceita tudo e mais um pouco. É comum circularem textos na rede em que se atribui a autoria a escritores famosos, como Luis Fernando Verissimo, Clarice Lispector e Fernando Pessoa. Muitos desses textos que chegam às nossas caixas postais nunca foram escritos por esses autores.


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Referências

CHAUI, M. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003.

ELIAS, V. M. S. Hipertexto, leitura e sentido. Calidoscópio, v. 3, n. 1, p. 13-19, jan./abr. 2005.

KOCH. I. G. V. Desvendendo os segredos do texto. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

LEÃO, L. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.

MARCUSHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3. ed. São Paulo: Parábola, 2008.

RISSI, G. C. Hipertexto e estratégias de leitura. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

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