Impessoalização da linguagem

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Todo texto, em maior ou menor grau, manifesta a opinião daquele que o produz. Em certos textos, particularmente os que buscam efeitos de sentido de objetividade, como artigos científicos e dissertações argumentativas, é recomendável que sejam marcados pela impessoalidade, ou seja, desprovidos de qualquer traços pessoais.

A impessoalização consiste numa estratégia discursiva que consiste no apagamento das marcas que remetem à voz responsável pela autoria do texto, buscando com isso um efeito de objetividade, característica de diversos gêneros textuais e que pode ser observada em textos científicos, em verbetes de dicionários e enciclopédias, em leis, em editoriais jornalísticos, entre outros. A propósito deste último gênero, convém lembrar que ele manifesta a voz do jornal e não de uma pessoa específica, por isso mesmo não vem assinado.

A impessoalidade é uma forma de conseguir credibilidade do destinatário àquilo que se veicula, pois passa a ideia de isenção, de imparcialidade. Por outro lado, a subjetividade, quando escancarada, pode comprometer a credibilidade do que se informa e até mesmo do autor do texto, como numa fala de um comentarista do canal Sportv que, durante a uma partida de futebol entre Vasco da Gama e Corinthians, chegou a dizer, por lapso ou ingenuidade, o seguinte: “O Vasco não deve mudar. Temos de continuar jogando como estamos”. O uso da primeira pessoa do plural por parte do comentarista escancara sua parcialidade, nada aconselhável na fala de um jornalista no exercício da função de comentarista de uma partida de futebol transmita ao vivo para milhões de pessoas. Se o comentarista tivesse usado a terceira pessoa no lugar da primeira (O Vasco não deve mudar. Tem de continuar jogando como está), não teria – para usar uma expressão popular – dado bandeira e revelado publicamente sua torcida pelo Vasco da Gama.   

Há várias estratégias para se conseguir a impessoalidade nos textos. A principal delas consiste na omissão de marcas linguísticas que remetam ao enunciador. Se há um enunciado, há um enunciador, mesmo que não haja no texto marca linguística que remeta a ele. Num enunciado como A baleia é um animal mamífero, evidentemente há alguém, o enunciador, que afirma que a baleia é um animal mamífero, mas em vez de dizer Eu afirmo que a baleia é um animal mamífero, a opção foi apagar as marcas linguísticas de pessoa (o pronome [eu] e a forma verbal de primeira de pessoa [afirmo]), que remetem ao enunciador. Com isso, fica a impressão de que o enunciado fala por si mesmo, o que produz um efeito de sentido de objetividade.

A opção por explicitar as marcas linguísticas do enunciador no enunciado, ou de omiti-las gera dois tipos de textos:

a) textos enunciativos: aqueles em que as marcas linguísticas do enunciador estão expressas no enunciado por pronomes e formas verbais de primeira pessoa, como em Na minha opinião, eu acho conveniente que o número de vagas seja ampliado, em que os elementos linguísticos grifados remetem àquele que fala, o enunciador.

b) textos enuncivos: aqueles em que as marcas linguísticas do enunciador foram apagadas. Há, evidentemente, um enunciador, mas as marcas linguísticas que remetem a ele foram omitidas. O enunciado acima seria redigido da seguinte forma: Convém que o número de vagas seja ampliado.

Relacionando ao esquema da comunicação proposto por Roman Jakobson, a impessoalidade tem a ver com a função referencial da linguagem, aquela cujo foco está no referente, ao passo que a pessoalidade relaciona-se à função emotiva, aquela cujo foco recai no emissor. Na produção de textos que devem se caracterizar pela impessoalidade, a função referencial deve ser a dominante, já que o foco do texto é o tema sobre o qual se fala.

A observância de alguns procedimentos contribuem para conferir efeitos de sentido de  impessoalidade aos textos. Destacam-se alguns:

1. Uso de construções com sujeito oracional (o sujeito é a oração destacada)

É provável que a nova vacina possa ser aplicada ainda este ano.

Convém que se faça uma ampla divulgação.

Urge revogar essas medidas.

2. Uso de sujeito indeterminado (verbo + se)

Acredita-se que a nova vacina possa ser aplicada ainda este ano.   

Necessita-se de mais recursos para a pesquisa.

Apela-se para a revogação dessas medidas.

3. Uso da voz passiva

Um novo argumento será apresentado adiante.

Gastos devem ser cortados.

4. Uso de sujeito agente inanimado, dando voz a quem tem autoridade para se manifestar sobre o que se fala.

A ciência corrobora essa tese.

A sociedade reclama uma providência urgente.

A escolha das palavras dos textos também está ligada aos efeitos de sentido produzidos, portanto a impessoalidade dos textos decorre também do vocabulário usado. Deve-se preferir palavras e expressões mais neutras no lugar de outras que manifestam avaliações (positivas ou negativas) do enunciador. Em vez de dizer assistência adequada aos viciados (ou drogados), dizer assistência adequada aos dependentes químicos. No lugar, de a medida do governo foi maravilhosa porque põe fim à farra na distribuição de verbas para apaniguados, deve-se optar por: a medida do governo foi oportuna porque põe fim à prática na distribuição de verbas para protegidos.

Por último, mas não menos importante, convém lembrar que os recursos apresentados criam um efeito de sentido de impessoalidade, porque mascaram as avaliações e opiniões pessoais. No entanto, o texto continua sendo a expressão pessoal de seu autor. A impessoalidade é apenas uma estratégia discursiva para o texto produzir sentido de objetividade, que não deve ser vista como valor absoluto, já que existem graus de objetividade e também de subjetividade.

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