Implícitos e comprometimento do falante

Implícitos e comprometimento do falante

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No artigo, trato do comprometimento do falante em relação àquilo que diz e de sentidos das frases que não são expressos, particularmente dos pressupostos, da ironia e do lítotes.

Comprometimento do falante

As frases exprimem o comprometimento do falante em relação àquilo que fala, como se pode observar nos exemplos a seguir.

Eu tenho certeza de que ele foi o responsável pelo acidente.

Não tenho dúvidas de que ele foi o responsável pelo acidente.

Desconfio de que ele foi o responsável pelo acidente.

Acho que ele foi o responsável pelo acidente.

Há um conteúdo informacional veiculado expresso na oração “ele foi o responsável pelo acidente”. Esse conteúdo é introduzido por outra oração que revela o grau de comprometimento do falante. Nos exemplos a e b, ele se compromete com o que é dito; já em c e d, não se compromete. Em outros termos, em a e b o enunciador se responsabiliza sobre o que enuncia; em c e d não se responsabiliza pelo que diz.

Outra forma usada para evitar o comprometimento é atribuir o conteúdo informacional a outrem não identificado (em muitos casos, esse outrem nem existe de fato) como em:

Ouvi dizer que ele foi o responsável pelo acidente.

Contam que ele foi o responsável pelo acidente.

Implícitos

Muitas vezes, uma frase pode remeter a sentidos que não estão expressos, mas que podem ser inferidos.

Há algum tempo um site de notícias trazia a seguinte manchete:

Mulheres já podem dirigir na Arábia Saudita

Essa frase traz um conteúdo implícito: antes as mulheres não podiam dirigir na Arábia Saudita. Há na frase um elemento linguístico que permite ao leitor ou ouvinte inferir o conteúdo implícito: o advérbio .

Outro exemplo:

Pedro deixou de fumar

Essa frase remete a um conteúdo implícito: Pedro fumava anteriormente. O elemento linguístico que permitiu inferir o conteúdo implícito é a expressão deixou de.

Os linguistas dizem que, nesses casos, ocorreu pressuposição. Há um posto, a frase, e um pressuposto, o conteúdo implícito. Na pressuposição, há sempre na frase posta uma expressão linguística que permite inferir o conteúdo pressuposto.

Há, no entanto, especialmente na linguagem falada, certas frases que remetem a informações implícitas sem que haja qualquer elemento linguístico que leve a ela (não se trata de pressuposição, portanto). O interlocutor infere o conteúdo implícito a partir de sua experiência pessoal e do contexto onde ocorre a interação.

Imagine a seguinte situação. Há uma importante reunião marcada na empresa para começar exatamente às 9 horas da manhã. Um dos diretores chega esbaforido poucos minutos antes das 10 horas da manhã, entra e diz:

O trânsito está péssimo.

Evidentemente o propósito comunicativo de quem proferiu essa frase não era informar as condições do trânsito naquela manhã, mas justificar e, de certa forma, pedir desculpas pelo atraso. Essa frase, dita naquelas circunstâncias, contém uma informação implícita. Ocorre que nela não há qualquer elemento linguístico que leve a ela.

Veja um outro caso. Podemos usar uma frase declarativa não para afirmar ou negar algo, mas para fazer um pedido. Quando uma pessoa diz para outra Está um calor insuportável aqui dentro, pode ser apenas uma constatação de que está calor, ou seja, quem fala afirma exatamente aquilo que está dito, sem qualquer subentendido. Nesse caso, temos uma frase declarativa. Mas, numa determinada situação comunicativa, aquela mesma frase pode conter uma informação implícita: um pedido para que se abram as janelas ou se ligue o ar-condicionado.

Na conversação cotidiana, fazemos isso com muita frequência como forma de polidez. Quantas vezes não dizemos a alguém Você teria uma caneta?, em vez de Me empreste a caneta, que soa muito imperativo.

Ironia

O fragmento a seguir foi extraído do livro Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

– Com força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Ânimo, ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isso. “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.” São palavras de Jesus Cristo. Já se vê que a comadre era forte em história sagrada. (ALMEIDA, 2011, p. 204)

A última frase não deve ser lida literalmente já que o que está explícito no enunciado não corresponde exatamente ao que se diz. Em termos mais técnicos, ouvem-se aí duas vozes: uma presente no enunciado e outra que corresponde à enunciação. Diz-se uma coisa mas de fato está se dizendo outra, que é o contrário do efetivamente dito. A frase é, portanto, irônica.

A ironia combina dois planos: o do enunciado e o da enunciação. O primeiro orientado positivamente; o segundo, negativamente. Ao afirmar “Já se vê que a comadre era forte em história sagrada”, orientação positiva, o enunciador está dizendo que a comadre não sabe nada de história sagrada, orientação negativa.

A frase “Já se vê que a comadre era forte em história sagrada” contém uma ironia, pois a referência textual da comadre contém um erro, pois a frase “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo, uma vez que aparece no Velho Testamento (Gênesis), em que Jesus Cristo não aparece.

É evidente que só os leitores que têm o conhecimento prévio de que a frase “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo perceberão a ironia.

Um outro exemplo. No prefácio da edição brasileira do Curso de linguística geral, de Ferdinand Saussure, feita pelo professor Isaac Nicolau Salum, há a seguinte passagem:

“A 1ª edição do Curso é de 1916, como se sabe, ‘obra póstuma’, pois Saussure faleceu a 27 de fevereiro de 1913. A versão portuguesa sai com apenas 56 anos de atraso.” (SALUM, 1972, p. XIII)

Na última frase, afirma-se algo que é o contrário do que efetivamente se diz. Se a edição demorou 56 anos para sair, o uso do advérbio “apenas” confere à frase sentido irônico.

Lítotes

As frases poderem afirmar ou negar algo. Muitas vezes, uma frase afirma algo pela negação de seu contrário. Trata-se de uma figura de linguagem que os estudiosos do texto e do discurso chamam de lítotes.

O nome pode parecer estranho (e é mesmo). O importante não é dominar uma nomenclatura (o nome da figura), mas perceber os sentidos que se escondem por trás de uma forma linguística. Um enunciador, como vimos, pode usar uma forma interrogativa para pedir. Nas lítotes, a forma gramatical é negativa, mas o sentido é afirmativo. Essa figura se aproxima muito da ironia. Veja exemplos:

Ela não é nada boba.

Luana não é nada feia.

Embora ambas, do ponto de vista gramatical, tenham estrutura gramatical negativa, afirmam algo. Na primeira, afirma-se que Luana é esperta; na segunda, que é bonita.

As figuras de linguagem não devem ser vistas como ornamentos do discurso, recursos para tornar mais belo o que se pretende dizer. As figuras que comentei no artigo, lítotes e ironia, estão sendo empregadas como recursos argumentativos, como uma forma de enfatizar o que se pretende dizer.


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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias.  Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011.

SALUM, Isaac Nicolau. “Prefácio à edição brasileira”. In: SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. 4ª. ed. Tradução de Antônio Chelini; José Paulo Paes; Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1972.


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