Ironia

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Já tratei aqui no blogue de uma figura de retórica denominada ironia. Volto ao tema neste novo post para acrescentar algumas coisas de que não tratei anteriormente. Este poste, portanto, amplia e substitui o anterior.

A palavra ironia tem sua origem no grego, eirōneía, cujo sentido é ‘ação de interrogar, fingindo-se de ignorante’. Ironia, portanto, tem a ver com dissimulação. Aristóteles distinguia a eirōneía da alazoneía. Para o filósofo grego, a eirōneía é uma dissimulação autodepreciativa, enquanto a alazoneía é uma dissimulação jactanciosa. A falsa depreciação de si mesmo, dissimulando ignorância numa discussão para que se possa avançar nela é o que se denomina ironia socrática

Atualmente, usa-se a palavra ironia tanto para uma censura por meio do elogio ou para um elogio por meio da censura. Na ironia, há um contraste entre o ser e o parecer. Na aparência se diz A, mas na essência se diz B. Parece um elogio, mas é censura; parece censura, mas é elogio. Em termos mais simples, trata-se de uma figura em que palavra ou expressão são empregadas em sentido contrário ao original, por exemplo, dizer “excelente trabalho” em vez de “péssimo trabalho”. Nesse caso, “elogia-se” censurando.

O valor irônico da palavra ou da expressão resulta do contexto. A ironia é uma espécie de antífrase, figura de retórica que consiste em empregar palavra ou expressão com sentido oposto ao verdadeiro. O professor José Luiz Fiorin ressalta que a ironia apresenta graus, indo do gracejo ao sarcasmo, passando pelo escárnio, pela zombaria, pelo desprezo etc. Para Goëthe, “a ironia é aquela pitadinha de sal que, sozinha, torna o prato majestoso”.

Na ironia, há uma superposição de vozes, combinando-se dois planos: o da enunciação e o do enunciado. Diz-se algo no enunciado, mas o contrário na enunciação, ou seja, há uma inversão semântica. Há, como diz o sentido etimológico da palavra ironia, uma dissimulação. Finge-se dizer uma coisa para se dizer o contrário. Retomando o exemplo apresentado. No enunciado diz-se que o trabalho foi excelente; na enunciação, que foi péssimo. Como se pode observar, afirma-se no enunciado, mas nega-se na enunciação.

Se duas coisas são ditas ao mesmo tempo. São duas vozes que manifestam pontos de vista diferentes, um orientado positivamente; outro, negativamente. Perceber a ironia pressupõe identificar essas duas vozes, esses dois pontos de vista.

A ironia pode ser observada em todas as esferas discursivas. Na literatura, alguns autores recorrem a ela com frequência como o nosso Machado de Assis e o irlandês Jonathan Swift. Nos textos literários, a ironia muitas vezes abarca o texto todo, veja-se por exemplo o conto Teoria do medalhão, de Machado de Assis.

Comento, a seguir, um fragmento de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Nele, observam-se três vozes: a da comadre, que fala em discurso direto, a do narrador, que fecha o trecho, e uma citação reportada atribuída a Jesus Cristo.

– Com força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Ânimo, ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isso. “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.” São palavras de Jesus Cristo.

Já se vê que a comadre era forte em história sagrada.

A fala do narrador é evidentemente irônica, pois no enunciado afirma que a comadre “era forte em história sagrada”, isto é, conhecia bem história sagrada, mas na enunciação nega isso. A leitura que se deve fazer da frase é que a comadre era fraca em história sagrada, não conhecia direito história sagrada.

A percepção do valor irônico, evidentemente, depende do conhecimento de mundo do leitor, que deverá ser ativado na leitura. Esse conhecimento diz respeito a saber que a citação reportada “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo, pois se encontra no Velho Testamento, mais precisamente no Gênesis, em que Jesus Cristo não aparece.

Northrop Frye, em sua monumental obra, Anatomia da Crítica, distingue ironias. Para o crítico canadense, há ironias sofisticadas e ironias ingênuas. Segundo Frye, “… a diferença principal entre ironia sofisticada e ingênua é que o ironista ingênuo chama a atenção ao fato de que está sendo irônico, ao passo que a ironia sofisticada simplesmente afirma algo e deixa o leitor adicionar o tom irônico por conta própria”.

Aproveito a citação de Frye para comentar uma regrinha que muitas gramáticas pedagógicas e manuais de escrita “ensinam” quando tratam de pontuação, particularmente quanto ao uso das aspas.

É comum esse tipo de obra afirmar que as ironias devem ser destacadas no texto por aspas. Quando se trata de textos digitados e impressos, recomendam que se use o itálico para destacar a ironia. A justificativa apresentada é que se está usando a palavra em sentido diverso do usual.

Ocorre que acrescentar destaque (aspas ou itálico) a uma ironia sofisticada subtrai dela a sutileza, transformando-a em uma ironia ingênua, na medida em que rouba do leitor a possibilidade de adicionar o tom irônico, a pitadinha de sal de que fala Goëthe, por conta própria.

Veja a propósito esses versos da canção A rosa, de Chico Buarque.

A Rosa garante que é sempre minha
Quietinha, saiu pra comprar cigarro
Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
Que sorte
Que sorte, voltou toda sorridente

Para a personagem que fala em primeira pessoa, o marido (namorado) da Rosa, sair para comprar cigarro e voltar sorridente com umas coisas do Norte expressa um ponto de vista positivo em relação à Rosa. No entanto, outra voz se faz ouvir que mostra que a Rosa voltou sorridente por um motivo que não preciso dizer qual. E o marido ou o namorado ainda acredita no que a Rosa diz que ela é sempre dele. É bom parar por aqui.

Não perceber a bivocalidade faz com que o leitor interprete o ponto de vista do autor em relação ao que fala como positivo quando na verdade é negativo (ou vice-versa). Aí é que mora o perigo.

Se o leitor faz uma leitura literal, atendo-se exclusivamente ao sentido expresso no enunciado, concluirá que o autor disse uma coisa quando na verdade está dizendo outra, o que acaba gerando um quiproquó, palavra que vem do latim (quid pro quo, uma coisa pela outra), cujo sentido é confusão. Nas redes sociais é comum pessoas agredirem-se verbalmente porque não percebem a ironia de uma postagem. Eu já fui vítima disso algumas vezes.


Acompanhe também nossos artigos na revista Meer. Segue o link:

https://www.meer.com/pt/75239-ficcionalidade

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