Ironia

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Os tratados de retórica e as gramáticas pedagógicas, ao tratar das figuras, fazem referência à ironia. No artigo, faço algumas considerações sobre essa figura de retórica.

A palavra ironia tem sua origem no grego, eirōneía, cujo sentido é ‘ação de interrogar, fingindo-se de ignorante’. Ironia, portanto, tem a ver com dissimulação.

De modo bastante simplificado, as gramáticas e manuais costumam dizer que há ironia quando se usa palavra em sentido contrário ao original; por exemplo, dizer “excelente trabalho” em vez de “péssimo trabalho”. Ao se valer da ironia, pretende-se obter-se efeitos de sentido crítico, humorístico, sarcástico…

Na ironia, há uma superposição de vozes, combinando-se dois planos: o da enunciação e o do enunciado. Diz-se algo no enunciado, mas o contrário na enunciação, ou seja, há uma inversão semântica. Há, como diz o sentido etimológico da palavra ironia, uma dissimulação. Finge-se dizer uma coisa para se dizer o contrário. Retomando o exemplo apresentado. No enunciado diz-se que o trabalho foi excelente; na enunciação, que foi péssimo. Como se pode observar, afirma-se no enunciado, mas nega-se na enunciação.

A ironia pode ser observada em todas as esferas discursivas. Na literatura, alguns autores recorrem a ela com frequência. Nos textos literários, a ironia muitas vezes abarca o texto todo.

Comento, a seguir, um fragmento de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Nele, observam-se três vozes: a da comadre, que fala em discurso direto, a do narrador, que fecha o trecho, e uma citação reportada atribuída a Jesus Cristo.

– Com força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Ânimo, ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isso. “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.” São palavras de Jesus Cristo.

Já se vê que a comadre era forte em história sagrada.

A fala do narrador é evidentemente irônica, pois no enunciado afirma-se que a comadre “era forte em história sagrada”, isto é, conhecia bem história sagrada, mas na enunciação nega-se isso. A leitura que se deve fazer da frase é que a comadre era fraca em história sagrada, não conhecia direito história sagrada.

A percepção do valor irônico, evidentemente, depende do conhecimento de mundo do leitor, que deverá ser ativado na leitura. Esse conhecimento diz respeito a saber que a citação reportada “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo, pois se encontra no Velho Testamento, mais precisamente no Gênesis, em que Jesus Cristo não aparece.

Northrop Frye, em sua monumental obra, Anatomia da Crítica, distingue ironias. Para o crítico canadense, há ironias sofisticadas e ironias ingênuas. Segundo Frye, “… a diferença principal entre ironia sofisticada e ingênua é que o ironista ingênuo chama a atenção ao fato de que está sendo irônico, ao passo que a ironia sofisticada simplesmente afirma algo e deixa o leitor adicionar o tom irônico por conta própria”.

Para encerrar este curto artigo, aproveito a citação de Frye para comentar uma regrinha que muitas gramáticas pedagógicas e manuais do boa escrita “ensinam” quando tratam de pontuação, particularmente quanto ao uso das aspas.

É comum esse tipo de obra afirmar que as ironias devem ser destacadas no texto por aspas. Quando se trata de textos digitados e impressos, recomendam que se use o itálico para destacar a ironia. A justificativa apresentada é que se está usando a palavra em sentido diverso do usual.

Ocorre que acrescentar destaque a uma ironia sofisticada (aspas ou itálico) subtrai dela a sutileza, transformando-a em uma ironia ingênua, na medida em que rouba do leitor a possibilidade de adicionar o tom irônico por conta própria.

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