Leitura do texto literário

Tempo de leitura: 9 minutos

No artigo, resumo o que falei numa recente apresentação que fiz no canal MagisterVerbis Voz do Palavrador sobre o tema Leitura do texto literário. Para assistir ao vídeo com a apresentação completa, clique aqui.  

Falar de leitura literária se justifica porque ler textos literários exige que se mobilizem estratégias que vão além das empregadas na leitura dos chamados textos utilitários. É pacífico que a escola deva trabalhar a variedade de gêneros. Fora da escola o estudante tem contato com uma gama variada de gêneros (avisos, textos publicitários, cartazes e especialmente os que circulam no mundo digital), mas o acesso à literatura, para a maioria dos estudantes brasileiros, se dá apenas e tão somente na escola, por isso ela deve conceder espaço privilegiado aos textos literários.

Nos textos utilitários, autor e leitor têm praticamente toda a atenção voltada ao conteúdo informacional, isto é, àquilo que o texto diz. Nos textos literários, o foco recai também plano da expressão, ou seja, como o conteúdo é manifestado ao leitor.

Textos literários não apenas transmitem conteúdos, mas também procuram sensibilizar o leitor por meio de arranjos especiais na linguagem, daí a relevância do plano da expressão.

LEITURA

Ler é construir sentidos, por meio de um processo interativo entre autor e leitor. O texto é o “local” em que eles interagem. O autor, ao produzir o texto, tem em mente um sentido; o leitor, ao lê-lo, (re)constrói o sentido a partir de seus conhecimentos prévios com base em pistas que o autor deixou espalhadas na superfície do texto. Os conhecimentos prévios são de diversas ordens: conhecimento enciclopédico, textual, linguístico, genérico, etc.

O sentido, portanto, não está no texto, mas é uma (re)construção do leitor na interação; por isso leitores diferentes construirão sentidos diferentes para um mesmo texto. Se o sentido é uma construção do leitor, há uma pergunta inevitável: qualquer sentido que se atribua ao texto é válido? Evidente que não. O texto pode comportar vários sentidos, mas não qualquer sentido, pois é preciso que o sentido esteja inscrito no texto.

Em suma: podemos definir leitura como uma prática social de construção de sentidos decorrente de um processo interação entre autor e leitor mediado pelo texto.

TEXTO

Dependendo do quadro teórico que se adote (linguística textual, análise do discurso, semiótica, etc.), há várias definições de texto. Mesmo dentro de uma perspectiva teórica, o conceito pode variar de autor para autor.

Adoto aqui uma definição bastante simples: texto é um todo de sentido que estabelece comunicação entre sujeitos.

Nesta definição, destacam-se duas coisas:

1) se é um todo de sentido, o texto é marcado pela coerência;

2)  se exerce comunicação entre sujeitos, o texto é marcado pelo dialogismo, que decorre da interação verbal.

O texto é formando da junção de dois planos que se pressupõem: um conteúdo e uma expressão. Em termos bem simples, o conteúdo é aquilo que o texto diz. A expressão é a substância de ordem material e sensorial que manifesta o conteúdo, ou seja, uma linguagem qualquer. O conteúdo é de ordem cognitiva; a expressão é de ordem sensorial, ou seja, é percebida pelos sentidos. Num texto falado, pela audição; num texto escrito, pela visão.

A separação que se faz entre conteúdo e expressão tem apenas aspecto didático e metodológico, já que, na prática, não há como separar do outro, já que ambos se pressupõem. São como o verso e o anverso de uma folha de papel. Todo conteúdo se manifesta por uma expressão e toda expressão é expressão de um conteúdo.

A leitura que se faz de um texto verbal nem sempre deve ser feita literalmente, pois nem sempre há uma equivalência absoluta entre expressão e conteúdo, ou seja, pode haver conteúdos que não são manifestados. Isso ocorre porque o autor conta com a cooperação do leitor, por isso ele economiza referências a conteúdos, pois crê que o leitor irá preencher as lacunas que deixa. Compete ao leitor recuperar os conteúdos não manifestados a partir de pistas que o autor deixou espalhadas na superfície do texto.

Em outros casos, o autor diz algo no plano da expressão e outra no plano do conteúdo. Às vezes, nega no enunciado, mas afirma na enunciação. Não raramente costuma-se dizer o contrário do que está expresso no texto, como se pode observar no trecho que segue, extraído da obra Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

– Com força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Ânimo, ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isso. “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.” São palavras de Jesus Cristo.

Já se vê que a comadre era forte em história sagrada. (ALMEIDA, 2011, p. 204)

A última frase não deve ser lida literalmente já que o que está dito implicitamente no enunciado não corresponde ao que efetivamente se diz. Em termos mais técnicos, nessa frase, ouvem-se duas vozes: uma expressa no enunciado e outra que corresponde ao que se diz na enunciação, que é o contrário do que é dito no enunciado. Trata-se de uma figura de linguagem chamada ironia.

A ironia combina dois planos: o do enunciado, aquilo que é dito, e o da enunciação, o ato de dizer. O primeiro é orientado positivamente; o segundo, negativamente. Ao afirmar “Já se vê que a comadre era forte em história sagrada”, orientação positiva, o enunciador está dizendo efetivamente que a comadre não sabe nada de história sagrada, orientação negativa. A comadre comete um erro, na medida em que a frase “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo, uma vez que aparece no Velho Testamento (Gênesis), em que Jesus Cristo não aparece.

Embora os textos sejam uma unidade de sentido, eles se inserem na corrente dos textos já produzidos estabelecendo diálogo com eles e servindo de ponto de partida para elaboração de textos novos. Os textos mantêm relações intertextuais e interdiscursivas com outros textos.

LITERÁRIO

Não é fácil responder à questão ‘O que é literatura?”. A professora Leyla Perrone-Moisés, em seu livro Mutações da literatura no século XXI, afirma:

“Fala-se em literatura como se todos soubessem do que se trata. Mas na verdade não existe um conceito de literatura, mas acepções que variam de uma época a outra.”

Há alguns critérios para se definir o que é literário. Como regra geral, eles costumam ser de duas ordens.

O primeiro é da ordem da imanência, pois foca na obra em si mesma e abstrai aspectos exteriores a ela, aquilo transcende a obra, como autor, época, gênero, etc.

Com base no critério da imanência, postula-se que a literatura se expressa por uma linguagem especial que a diferencia da linguagem ordinária.

Com base no critério da transcendência, literatura é aquilo que as fontes legitimadoras definem como literatura. Trocando em miúdos: Literatura é aqui que se diz que é literatura. Mas quem são essas fontes que têm autoridade e legitimidade para dizer que uma obra é ou não literária? Essa fontes legitimadoras são, principalmente, a academia, a crítica literária e os intelectuais.

A escola, embora não seja fonte legitimadora, tem papel relevante, pois  afiança e reverbera a legitimação. A escola tem papel importante na formação de leitores literários, por isso é necessário que se pense na educação literária dos alunos.

No universo da escola, o trabalho com literatura não deve se restringir à alta literatura, aos clássicos, ao cânone literário. Ela deve também fazer circular entre os estudantes a literatura dita popular e textos do que se convencionou chamar de paraliteratura, de literatura de massa, ou ainda de literatura de consumo, porque a leitura desses textos não canônicos possibilitará aos estudantes criar seus próprios parâmetros de gosto.

Para formar o leitor literário, é fundamental que os estudantes sejam estimulados não só a manifestar o que entenderam dos textos, mas também a exprimirem juízos de valor acerca deles. O gosto se aprende e se apura com as práticas de leitura.

O conceito de literário não é absoluto, variando de época para época, de cultura para cultura, de pessoa para pessoa. O que faz com que um texto seja considerado literário não são aspectos apenas imanentes, mas também fatores institucionais, por isso se considera literário aquilo que é legitimado e proclamado como tal pela crítica, pela universidade, pelos intelectuais, pela escola. Como o conceito de literário varia de época para época e de sociedade para sociedade, o que é hoje legitimado como literário não significa que sempre tenha sido assim. Autores como Edgar Allan Poe, Flaubert e Balzac, hoje expoentes da literatura ocidental, tiveram, cada um em sua época, sua obra depreciada e não reconhecida como literária.

Este assunto é discutido em meu livro Leitura do texto literário, publicado pela Editora Contexto.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Cotia, SP: Ateliê: 2006.

PERRONE-MOYSÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

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