Leitura literária: uma abordagem sintático-semântica

Tempo de leitura: 27 minutos

Considerações iniciais

Com a Lei de Diretrizes de Bases (LDB n0. 5692/71), os estudos de língua materna no Ensino Médio se dicotomizaram em duas disciplinas autônomas: língua e literatura, com ênfase na brasileira. Em alguns casos, tem-se observado, na rede particular de ensino, uma tricotomia, caracterizada por três frentes de estudos: língua, literatura e produção de texto, muitas vezes desenvolvida por professores distintos, que, em muitos casos, sequer dialogam. Grande parte do material didático destinado ao Ensino Médio incorporou essa divisão, apresentando o programa de língua portuguesa em três frentes: língua, literatura e redação (produção de texto). O resultado é que uma disciplina acaba se transformando em duas ou até mesmo três com status de disciplinas autônomas. Como consequência dessa prática, temos observado que os alunos, em grande parte dos casos, não conseguem estabelecer relações entre os estudos linguísticos com os de literatura e produção de texto, com um consequente baixo desempenho escolar.

A proposta que apresentamos é um ensino articulado de língua e literatura. Neste texto, intentamos mostrar uma abordagem do texto literário por meio de marcas linguísticas da enunciação e de figuras presentes no nível discursivo do texto como forma de construção de sentidos, integrando, dessa forma, estudos linguísticos com estudos literários. A base teórica em que nos aportamos são os estudos da enunciação de Benveniste e os da Semiótica discursiva.

O discurso como eixo articulador

A leitura tem por matéria-prima a língua em uso, daí nossa proposta de se tomar o discurso como eixo articulador para as frentes em que se costuma trabalhar a disciplina Língua Portuguesa. Levando em conta que o discurso se materializa em textos (literários ou não), o trabalho do professor deve ter sempre em vista o texto. Nesse sentido, nossa proposta vai ao encontro do que postulam os PCNs quando afirmam que “a unidade básica da linguagem verbal é o texto, compreendido como a fala e o discurso que o produz…“(BRASIL, 2000, p. 18).

Aqui é preciso abrir um parêntese, para esclarecer que, no que se refere à literatura, tem-se observado que seu ensino costumava privilegiar o aspecto histórico, destacando os chamados estilos de época (Barroco, Arcadismo, Romantismo etc.), deixando o texto literário em si em segundo plano e, quando esse é utilizado, é como exemplo de um modo histórico-cultural de abordar a literatura. Isso tem acarretado que, muitas vezes, autores contemporâneos têm sido deixados de lado nos estudos de literatura, em decorrência de o professor sentir-se inseguro de encaixar esses autores numa determinada “corrente literária”. Nesse sentido, vale lembrar o que postulam os PCNs: “a história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto, uma história que nem sempre lhe serve de exemplo” (BRASIL, 2000, p.16).

Os que defendem essa forma de abordar a literatura argumentam que é necessário explicitar as condições de produção do texto. Tal argumento é, evidentemente, válido; no entanto as condições de produção e de recepção devem ser recuperadas a partir do próprio texto e de sua relação com outros textos com os quais dialoga. O que propomos é que o objeto de conhecimento seja o texto literário, um produto cultural, que é o locus em que se manifesta a interação enunciador / enunciatário e que a primeira abordagem do texto se dê pelo nível discursivo a partir das marcas da enunciação e das figuras que revestem os temas, ou seja uma abordagem sintático-semântica.

Enunciação e condições de produção e  de recepção

Entendemos que um efetivo ensino de língua, de literatura e de produção textual não pode passar ao largo dos estudos sobre a enunciação, na medida em que é por meio dela que o sistema se atualiza. Em outras palavras, é pela enunciação que um sistema abstrato e social, a língua, concretiza-se e torna-se individual. A enunciação é a atividade pela qual um sujeito produz enunciados, ou seja, é a instância que permite a passagem da língua ao discurso. O sujeito da enunciação desdobra-se em enunciador (“o autor”) e enunciatário (“o leitor”).         

Levar o aluno a perceber esse desdobramento do sujeito da enunciação é fazê-lo compreender o caráter dialógico de todo discurso, mesmo que o eu e o tu não venham manifestados. Nesse sentido, vale lembrar as palavras Maingueneau (2006, p. 41) “Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é de fato tomada numa interatividade constitutiva; ela é um intercâmbio, explícito ou implícito, com  outros locutores, virtuais ou reais“.

A instalação de um sujeito cria um eixo de coordenadas espácio-temporais (um aqui e um agora). Essas categorias da enunciação – pessoa, espaço e tempo – permitem ao leitor/ouvinte estabelecer o contexto de produção e de recepção do texto: quem fala, de onde fala, em que tempo fala, e para quem fala.

A enunciação é sempre pressuposta pelo enunciado e com ele não se confunde, ou seja, se há um dito (o enunciado), pressupõe-se logicamente que houve um ato de dizer (a enunciação). Por exemplo, num enunciado como “Amor é um fogo que arde sem se ver”, pressupõe-se que houve alguém que disse: [Eu digo que] amor é um fogo que arde sem ser ver. No verso de Camões que nos serviu de  exemplo, as marcas linguísticas daquele que fala no texto ( o narrador), foram apagadas, criando com isso um efeito de sentido de objetividade. Quando as marcas linguísticas do narrador estão presentes no enunciado, temos o que se denomina a enunciação enunciada, cujos efeitos discursivos são de um simulacro da enunciação. Na ausência dessas marcas, isto é, do “apagamento” das marcas linguísticas do narrador, temos o que se denomina enunciado enunciado. A leitura de um texto deve começar por aí, verificando se o texto é um simulacro da enunciação (enunciação enunciada), no qual há marcas linguísticas do narrador, ou um enunciado enunciado, sem essas marcas linguísticas. Em termos mais simples: se se trata de texto em 1a. pessoa (aquele em que há um eu explicitado no enunciado) e textos em 3a. pessoa (aqueles em que as marcas linguísticas do eu que fala foram apagadas).

O narrador, como vimos, pode estar explicitado no enunciado ou não, e isso se observa por meio de marcas linguísticas, como os  pronomes e formas verbais. O narrador é delegado do enunciador, o responsável pela produção e organização do discurso. O narrador pode dar voz a outros atores presentes no texto (os personagens). Frise-se ainda que a presença ou não das marcas do narrador no texto é responsável pelos efeitos de sentido do texto: um texto com narrador instalado (narração em 1a. pessoa) terá efeito de sentido de subjetividade, ao passo que um texto sem marcas do narrador (narração em 3a. pessoa) terá efeito de sentido de objetividade. Em razão disso, não basta que o aluno saiba que um texto é narrado em 1a. ou 3a. pessoa, é preciso que ele perceba os efeitos de sentido que decorrem da utilização de um foco narrativo ou outro. A distinção dos efeitos de sentido de textos com narrador explicitado ou não permite ao professor situar os textos em determinados estilos de época. Por exemplo, autores naturalistas, buscando os efeitos de sentido de objetividade, têm preferência por textos em 3a. pessoa, ao passo que autores românticos têm preferência por textos em 1a. pessoa, na medida em que buscam efeitos de sentido de subjetividade em seus textos.

Como dissemos, a enunciação, ao instalar um sujeito, instala também um eixo de coordenadas espácio-temporais, por isso o sentido de formas linguísticas como pronomes (eu, tu, meu, teu etc.), advérbios (aqui, agora, hoje, ontem etc.), tempos verbais (pretérito perfeito, futuro do presente etc.) são dependentes da enunciação, já que vão compor a categoria dos dêiticos.

Como exemplo, apresentamos no quadro a seguir formas gramaticais que remetem ao espaço da enunciação e ao espaço fora da enunciação.

PESSOAESPAÇODEMONSTRATIVOADVÉRBIO
1a.espaço da enunciação  este, esta, istoaqui, cá
2a.espaço da enunciação  esse, essa, isso[1]
3a (não-pessoa)espaço fora da enunciação  aquele, aquela, aquilo

Quanto ao trabalho com os tempos verbais, esse também deve ser visto sob a ótica da enunciação, sendo o presente o tempo que coincide com a enunciação a partir do qual se instaura o eixo temporal dos textos. Os tempos verbais são concomitantes ou não com a enunciação, ou a um outro momento de referência instalado no texto. Os tempos não concomitantes à enunciação se articulam na categoria /anterioridade vs. posterioridade/, como se observa no quadro a seguir:

Momento da enunciaçãoi

Esses tempos, tomados em relação ao momento da enunciação, vão servir de momento de referência para a instalação de outros tempos no texto, configurando a organização temporal do discurso. Assim, em relação ao presente, pretérito e futuro, temos um presente, um pretérito e um futuro para cada um deles, conforme o seguinte esquema:

Tomando como base o que postula Fiorin (2001), temos então nove tempos verbais, a saber:

presente do presente – passado do presente – futuro do presente – presente do passado – passado do passado – futuro do passado – presente do futuro – passado do futuro – futuro do futuro

Nas gramáticas, esses tempos são apresentados com uma nomenclatura diferente, muitas vezes incompreensível para os alunos. O passado do passado é chamado de pretérito mais-que-perfeito; o passado do futuro, de futuro de presente composto. Quanto ao passado do passado, ele é chamado de pretérito perfeito ou pretérito imperfeito, se o processo verbal é tomado por inteiro ou em seu curso, respectivamente.

Entendemos que a nomenclatura proposta por Fiorin (2001) é de mais fácil compreensão para os estudantes. Cabe ao professor, depois de os alunos entenderem a mecânica dos tempos verbais, apresentar a eles a nomenclatura oficial. É preciso ressaltar que a categoria tempo por si só não dá conta da explicação da organização temporal do discurso. É necessário, pois, que o professor trabalhe também uma categoria pouco estudada na escola e nos manuais escolares, o aspecto. Se a temporalização do discurso se liga à instância da enunciação, projetando no texto um organizador temporal, a aspectualização não está atrelada à enunciação, mas ao modo como um observador vê os predicados como processos. Não é necessário, porém, que se trate o aspecto em toda sua riqueza de detalhes e com sua metalinguagem específica. Basta esclarecer aos estudantes a categoria /perfectivo vs. imperfectivo/ a fim de que eles façam a distinção entre processos conclusos de não conclusos, o que pode ser explicado facilmente pelo uso do pretérito perfeito em oposição ao pretérito imperfeito. Ambos indicam um tempo passado em relação ao presente, são portanto passado do presente. No entanto diferem quanto ao aspecto, o primeiro indica processo concluso; o segundo, processo inconcluso. Outras categorias a serem observadas são /incoatividade/ /duratividade/ e /terminatividade/ que nos permitem perceber os enunciados como processos, respectivamente, em seu início, em sua duração, em seu término.

 Os sentidos do texto

 Até agora chamamos a atenção para a organização do discurso a partir da enunciação, responsável pela actorialização (instalação do sujeito), espacialização (instalação do espaço) e da temporalização (instalação do tempo). Em relação a esta última chamamos a atenção para a aspectualização do discurso, na medida em que os processos podem ser concebidos em seu início, término e duração e também como concluídos ou não.

Actorialização, espacialização e temporalização dizem respeito à sintaxe do discurso. No entanto, o discurso deve ser tratado pelo professor também pelo seu componente semântico. Para isso, a Semiótica discursiva nos dá todo o aparato teórico e metodológico.

A Semiótica tem por objeto os textos, sejam eles verbais, não verbais ou sincréticos. As palavras de Barros (2003) deixam claro que o projeto da Semiótica é “descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz” (grifos da autora). Texto aqui é entendido como objeto de significação e de comunicação entre sujeitos de uma determinada sociedade e, portanto, veiculador de valores ideológicos. Para explicar o que o texto diz e o que faz para dizer o que diz, a Semiótica preocupa-se inicialmente com o exame do plano do conteúdo dos textos. O(s) sentido(s) do texto decorre(m) de um percurso que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Esse percurso é denominado percurso gerativo do sentido e apresenta três níveis:

a) nível fundamental: o mais simples e abstrato, no qual o sentido emerge de uma oposição, p. ex. /vida vs. morte/, /natureza vs. cultura/;

b) nível narrativo: em que a narrativa é organizada a partir do ponto de vista de um sujeito;

c) nível discursivo: o mais superficial e concreto em que a estrutura narrativa é assumida por um sujeito da enunciação.

O que propomos é que se faça uma leitura em profundidade do texto partindo do seu nível mais superficial e concreto para chegar ao(s) sentido(s).         

Textos temáticos e textos figurativos

No trabalho que o professor faz com as categorias gramaticais, a ênfase recai sobretudo na classificação das palavras em uma determinada classe (substantivo, adjetivo, pronome etc.), em uma subclasse (concreto, abstrato, definido, indefinido etc.) e flexão (variável e invariável). O importante é que o professor, ao tratar das formas linguísticas, enfatize que elas existem para produzir sentidos, o que vem reiterar nosso pressuposto de que os textos devem ser o ponto de partida do trabalho do professor de língua portuguesa.

No nível discursivo, que é por onde propomos começar a análise, o texto se manifesta por meio de palavras que se combinam segundo regras da língua. Podemos distinguir entre as palavras da superfície do texto aquelas que remetem a referentes existentes no mundo natural e aquelas que remetem a conceitos e ideias. Evidentemente, estamos nos referindo a palavras lexicais, deixando de lado as palavras gramaticais (preposições, conjunções, artigos). Dependendo do referente, classificamos as palavras em concretas (aquelas que remetem a referentes do mundo natural) e abstratas (aquelas que remetem a conceitos e ideias). As primeiras remetem a referentes perceptíveis sensorialmente. As segundas remetem, não ao sensível, mas ao cognitivo. Aqui é necessário que se abra um novo parêntese. A questão da categoria /concreto vs. abstrato/ é tratada na escola apenas quando se faz referência à classe dos substantivos. Na realidade, toda palavra lexical pode ser enquadrada na categoria /concreto vs. abstrato/. Assim, temos verbos concretos como nadar, coçar, escrever e verbos abstratos como pensar, julgar. Há adjetivos concretos como verde, azul, alto, baixo, liso, áspero e adjetivos abstratos como feliz, estúpido.

Essa distinção é importante na medida em que possibilita observar dois tipos de texto, levando em conta se neles predominam palavras concretas ou abstratas. Denominam-se figurativos aqueles em que há predomínio de palavras concretas, as figuras. Denominam-se temáticos, aqueles em que há o predomínio de palavras abstratas, conceitos, ideias (temas). Os primeiros remetem ao mundo natural, o que lhes confere efeito de sentido de realidade;  os segundos interpretam o real, pois remetem a valores (inveja, orgulho, arrogância etc.). Os primeiros representam o real; os segundos interpretam o real.

Os textos figurativos são mais comuns nas narrações; os temáticos têm maior frequência em textos arrgumentativos. Nos textos figurativos, as figuras revestem o tema, ou seja, textos figurativos têm tema, porém este não está na estrutura superficial, mas na estrutura profunda, uma vez que está recoberto pelas figuras. Ressalvamos que, quando se fala em textos temáticos e figurativos, estamos levando em conta a dominância de figuras ou de temas, pois mesmo em textos temáticos há presença de figuras. Para Barros (1988, p. 115), “não há discursos não figurativos e sim discursos de figuração esparsa.”

Pensemos nos dois textos a seguir:

1. Roupa suja se lava em casa.

2. Divergências de natureza pessoal não devem ser discutidas em espaço público para que a privacidade não seja exposta.

Os dois dizem praticamente a mesma coisa. O primeiro é um texto figurativo, pois o tema vem recoberto figuras, que são percebidas sensorialmente: roupa, suja, lavar, casa, dando ao leitor um sentido de concretude.

O segundo é um texto temático, pois seu conteúdo é transmitido por meio de palavras que remetem a conceitos, ou seja, por meio de palavras abstratas (divergências, privacidade, intimidade, desavenças ). Trata-se de um texto temático.

O professor, ao trabalhar textos literários, deve levar os alunos a perceber que são textos predominantemente figurativos, o que significa que as palavras concretas (figuras) presentes no nível discursivo encobrem temas, isto é, conceitos. Dessa forma, o aluno, ao ler o conhecido poema de Drummond, em que se fala “No meio do caminho tinha uma pedra”, deve estar consciente de que caminho e pedra são figuras que revestem um tema, ou seja, o concreto recobre o abstrato. A leitura competente será então a construção desse sentido abstrato a partir desses elementos concretos presentes no nível discursivo.

Um pouco de prática

A título de exemplificação, aplicaremos os conceitos teóricos apresentados em um poema Ferreira Gullar.

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café

nesta manhã de Ipanema    

não foi produzido por mim

nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro

e afável ao paladar

como beijo de moça, água

na pele, flor

que se dissolve na boca. Mas este açúcar

não foi feito por mim.

Este açúcar veio

da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,

dono da mercearia.

Este açúcar veio

de uma usina de açúcar em Pernambuco

ou no Estado do Rio

e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana

e veio dos canaviais extensos

que não nascem por acaso

no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital

nem escola,

homens que não sabem ler e morrem de fome

aos 27 anos

plantaram e colheram a cana

que viraria açúcar.

Em usinas escuras,

homens de vida amarga

e dura

produziram este açúcar

branco e puro

com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

GULLAR, 2000, p. 165.

O método que propomos para estabelecer o(s) sentido(s) do texto é partir do mais concreto e superficial (nível discursivo) para chegar ao mais abstrato. Ressaltamos que há autores que  propõem que se inicie pelo nível narrativo, por este representar a ação do homem no mundo. Outros propõem uma análise a partir do nível fundamental. Nossa sugestão, leva em conta o fato de grande parte dos alunos não serem leitores experientes, daí a proposta de se iniciar a análise pelo mais concreto e superficial. Somente a título de exemplificação, uma análise que começasse pelo nível fundamental poderia partir, por exemplo, da oposição /doce vs. amargo/. A que começasse pelo nível narrativo, verificaria inicialmente o percurso do sujeito açúcar e suas transformações.

Como nossa proposta parte do nível discursivo, sugerimos que se comece a análise pelo que de mais concreto há nesse nível: seu componente semântico, as figuras.

Um rápido levantamento das figuras do texto permite reuni-las em algumas categorias que se opõem pelo sentido. Por exemplo:

  • açúcar, adoçar, açucareiro, afável: remetem a /doçura/, que se opõe a /amargura/ (vida amarga)
  • branco, açúcar, água: remetem a /claridade/, que se opõe a /escuridão/ (usinas escuras)
  • Ipanema, Estado do Rio: remetem a /urbanidade/, opondo-se a usina, Pernambuco, canaviais, lugares distantes, cana que remetem a /ruralidade/.

  Essas oposições figurativas são apenas exemplos. Os alunos poderão, evidentemente, encontrar outras. Como dissemos, as figuras dão concretude ao tema e são percebidas sensorialmente.

visuais: branco, flor, mercearia, usina, cana, canaviais, escuras, escola, hospital;

gustativas: adoçar, paladar, amarga;

táteis: beijo, dura.

O passo seguinte será o agrupamento das figuras levantadas e respectivas categorias que permitirá visualizar a oposição temática sobre a qual trabalha o poema, conforme o quadro a seguir:

doçura, claridade, urbanidadeamargura, escuridão, ruralidade
açúcar, doceamarga
brancoescura
Ipanema (Estado do Rio)Pernambuco, usinas, canaviais

 Como se pode observar, o encadeamento das figuras no nível sintagmático do texto, formando cadeias homogêneas (açúcar, cana, canavial, doce, adoçar, açucareiro, usina) nos dá a chave para a leitura do texto, já que por meio delas se manifestam os valores ideológicos.

Como propusemos que a análise do texto deva levar em conta as categorias da enunciação (sintaxe do discurso), em rápidas pinceladas, faremos alguns comentários sobre isso.

Há um narrador instalado no texto, como se depreende pela formas linguísticas de pessoa:

“O branco açúcar que adoçará meu café”

“não foi produzido por mim

Vejo-o puro”

“com que adoço meu café esta manhã em Ipanema”

Ao instalar um eu, instala-se um tu, não explicitado no texto e um espaço e tempo. O espaço da enunciação é o aqui, Ipanema, Rio de Janeiro, ao qual se opõe um espaço fora da enunciação, um não-aqui, Pernambuco, usinas, canaviais.  O tempo é o agora:  “Vejo-o puro”. Em relação a esse presente, temos dois momentos não-concomitantes: um futuro (“O branco açúcar que adoçará meu café”) e um passado (Este açúcar era cana /e veio dos canaviais extensos”). O passado instalado no texto (“plantaram e colheram a cana”) serve de momento de referência a um outro futuro (“que viraria açúcar”), ou seja, fato futuro de um fato passado (plantaram e colheram), por isso mesmo denominado futuro do passado, ou futuro do pretérito, segundo a nomenclatura gramatical. Podemos então sistematizar no quadro a seguir as categorias enunciativas do poema, destacando as oposições que elas estabelecem.

A conjunção do quadro enunciativo com o quadro das figuras anteriormente apresentado possibilita a construção do sentido do poema na medida em que permite que se visualize, a partir das figuras, os temas e os valores ideológicos do poema.

Vimos que, entre o nível superficial (discursivo) e o nível profundo, os textos apresentam um nível intermediário denominado narrativo. Em O açúcar, temos  o percurso de um  sujeito (o açúcar) que resulta de transformações de estado, de cana passa a ser açúcar pela manipulação de sujeitos dotados de um saber-fazer, ou seja, de uma competência (o saber) e de uma performance (o fazer), representados pelos “homens de vida amarga e dura”.

O percurso do sujeito açúcar desenrola-se temporalmente e espacialmente. A cana que, no passado em usinas escuras de Pernambuco, passa a ser o açúcar que adoçará o café em Ipanema, no Rio de Janeiro.

O texto, como vimos, não só é um todo de sentido, mas também um objeto de comunicação entre um enunciador e um enunciatário, no qual o primeiro visa persuadir o segundo. Em O açúcar, como vimos, o enunciador delega voz a um narrador instalado no texto que se dirige a um narratário não explicitado, visando persuadi-lo das diferenças sociais entre aqueles que produzem o açúcar e aqueles que o consumem. Os primeiros são figurativizados por aqueles que vivem nas cidades (Rio de Janeiro) em bairros ricos (Ipanema) e podem desfrutar de sua doçura ( “afável ao paladar / como beijo de moça, água / na pele, flor / que se dissolve na boca…”); os segundos são figurativizados por aqueles que vivem “em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola / homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos”.

Na categoria /doçura vs. amargura/, presente no nível mais profundo e abstrato do poema, o segundo termo da oposição é valorizado positivamente. O percurso que se estabelece entre os termos é o seguinte: afirma-se a doçura (“O branco açúcar que adoçara meu café”); nega-se a doçura (“homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / plantaram e colheram a cana”), para finamente afirmar a amargura (“homens de vida amarga/ e dura/ produziram esse açúcar”). Portanto, o que o poema exalta não é a doçura, a pureza, o afável, o branco, o puro, figuras que se referem ao açúcar, mas o amargo, o duro, o escuro, ou seja, a vida amarga e dura daqueles homens que em usinas escuras de lugares distantes produziram o açúcar que adoça o café das pessoas das cidades.

Levando-se em conta que o poema é um texto figurativo, a partir da leitura que fizemos é possível então chegar ao tema do poema. Em O açúcar, o tema é a desigualdade social.

Considerações finais

Neste artigo, apresentamos um modelo de abordagem do texto literário a partir do texto em si, procurando estabelecer suas condições de produção por meio da reconstituição da enunciação, que é sempre pressuposta. Como os valores ideológicos se manifestam no nível discursivo e, considerando que os textos literários são predominante figurativos, nossa proposta é que se faça o levantamento das figuras, relacionando-as às categorias da enunciação. A proposta de abordagem a partir do nível discursivo decorre do fato de esse ser o nível do texto mais superficial e concreto. A partir do nível discursivo, com sua semântica (os temas e as figuras) e sua sintaxe (as categorias da enunciação), pode-se chegar à estrutura profunda do texto, mais abstrata e simples, que é expressa por uma oposição. Esse valores, presentes na estrutura profunda, são assumidos por um sujeito que os investe de valor positivo ou negativo. O percurso desse sujeito irá compor o nível intermediário do texto (o nível narrativo), que representa a ação do homem mundo.

Ficando ainda no nível da exemplificação, na conhecida Canção do exílio, de Gonçalves Dias, pode-se mostrar que há um eu instalado no texto (“Minha terra tem palmeiras” / Não permita Deus que eu morra”), a partir do qual se estabelece um eixo de coordenadas espácio-temporais. No caso da Canção do exílio, a categoria espaço é altamente relevante e desdobra-se na oposição / aqui vs. lá/. sendo o aqui valorizado negativamente e o lá, positivamente. O levantamento das figuras, além de explicitar a oposição /exílio vs. pátria/ (/aqui vs. lá/), também permite situar o poema num determinado estilo, no caso, o romântico, na medida que essas figuras põem em cena valores como nacionalismo, saudosismo, exaltação à natureza, subjetivismo.

Num nível intermediário (narrativo), temos o percurso de um sujeito que está em disjunção de um objeto-valor, a pátria, e pretende entrar em conjunção com ela (“Não permita Deus que eu morra” / “Sem que volte para lá”).

O levantamento das figuras associado ao quadro enunciativo revela o não pertencimento do sujeito da enunciação ao lugar de onde fala e, por isso, o desejo de regresso à pátria.

Por último, mas não menos importante, é preciso considerar que a abordagem do texto deve também levar em conta outros textos com os quais o texto objeto de estudo dialoga, o que dado os limites deste trabalho não pudemos realizar.

REFERÊNCIAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.

______. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2003.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio), Parte II: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEF, 2000.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2. ed. São Paulo: Ática, 2001.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia (1950-1999). 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006.


[1] No português brasileiro atual, mesmo em variedade mais prestigiadas há uma neutralização dos demonstrativos este/esse, sendo usados indiferentemente com referência ao espaço da enunciação ou fora da enunciação.

Este artigo foi originalmente publicado no livro Literatura e ensino: contribuições para a formação do professor de ensino básico, organizado pela querida Mayra Pinto e publicado pela Pedro & João Editores.

4 Comentários


  1. Excelente! Seria ótimo se os professores que estão na ativa tivessem acesso a esse tipo de informação/formação.

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  2. Como sempre, excelente! Da teoria aos exemplos, passando pelas explicações claras e objetivas.

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