Mais uma vez a crase

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Não precisamos ir aos dicionários para saber o significado de gambiarra. Essa mania de dar um jeitinho, de improvisar algo para resolver um problema já faz parte de nossa cultura. Às vezes, por falta de algo, e diante de um grande problema, não tem jeito: muita gente recorrer à gambiarra. O importante é ter consciência que isso não resolve definitivamente o problema. Esse tipo de gambiarra não chega a me incomodar.

O que me incomoda mesmo é o que eu chamo de ensino-gambiarra, ou seja, em vez de se ensinar algo, apela-se para algum truquezinho, uma dica “infalível”, que fará o aluno resolver qualquer atividade, mesmo que não saiba nada do assunto. Acredite nisso, se quiser.

No ensino de língua portuguesa, isso tem largo uso por parte de “professores” que querem resolver os problemas de seus alunos, preparando-os para a aprovação em exames e concursos. Se o estudante topar com uma prova um pouco inteligente, os truquezinhos não vão funcionar, ou pior ainda, fatalmente o levarão a respostas erradas. Depois não adianta reclamar.

Digo isso porque um leitor me mandou uma mensagem dizendo que fez uma prova e seguiu a orientação do “professor” para verificar se numa determinada questão ocorria ou não o acento indicativo da crase. Ao aplicar a “dica” do mestre, constatou que não poderia haver o acento e assinalou essa resposta. Posteriormente, ao conferir o gabarito da prova, esse dizia que naquela questão o uso do acento grave era obrigatório. Segundo ele, o gabarito estaria errado e, por isso, queria entrar com recurso junto aos organizadores da prova pleiteando a anulação da questão.

A dica a que ele se refere (e que o professor lhe “ensinou”) é a seguinte: para saber se há crase diante de nome de lugar, use esse truque: “se venho DA, crase há; se venho DE, crase pra quê”. Exemplo:

            Vou a Bahia = Venho DA Bahia. Há crase portanto: Vou À Bahia.

            Vou a Roma = Venho DE Roma. Não há crase, portanto: Vou A Roma.

O truque é uma rima, mas não é uma solução. Os professores dizem que em vez do verbo voltar, podem-se usar os verbos morar ou estar. Se moro EM ou estou EM, não há crase; se moro NA ou estou NA, há crase.

Moro NA Bahia; Estou NA Bahia. Portanto em frases como Vou à Bahia, Dirijo-me à Bahia ocorre o acento. Mas se eu digo Moro em Roma, Dirijo-me a Roma, não pode haver o acento.

Aplicando a dica, o estudante pode descobrir se o nome de lugar admite ou não o artigo definido A, mas não basta o nome de lugar admitir artigo, é preciso que ele esteja presente e que o termo que rege o nome de lugar exija a preposição A. Afinal, para haver crase é preciso que haja dois aa que se fundam: o primeiro é preposição; o segundo, em geral, é artigo. Com um a apenas, seja preposição ou artigo, não há crase, porque não há fusão.

Numa frase como “Conheço a Bahia”, embora eu possa dizer Venho DA Bahia, não há crase, porque o verbo conhecer não pede preposição A: quem conhece conhece alguma coisa, alguém, algum lugar.

Mas vamos à frase que o candidato achava que não deveria ter acento grave e o gabarito dizia que o acento é obrigatório. Trata-se de um cartaz em que se lia:

            BEM-VINDOS À SÃO PAULO OKTOBERFEST

O candidato alega que não poderia haver o acento, porque o nome de lugar São Paulo não admite artigo. Usando o truquezinho: Venho DE São Paulo, Moro EM São Paulo, Estou EM São Paulo, ou seja, o nome de lugar São Paulo não admite artigo.

Ocorre que São Paulo na frase, não está indicando o nome de lugar para onde se vai, ou se mora ou se está. São Paulo nesse cartaz é parte da expressão SÃO PAULO OKTOBERFEST, que dá nome ao evento. E o nome do evento admite o artigo A. Vejam: A São Paulo Oktoberfest ocorrerá nos dias 15 e 16 de outubro, Estive NA São Paulo Oktoberfest e gostei muito.

Se o nome “São Paulo Oktoberfest” admite o artigo A, como ficou demonstrado e se o termo que rege esse nome exigir a preposição A, ocorrerá a fusão, isto é, a crase, e ela deve ser indicada pelo acento grave. Bem-vindo, como se sabe, exige a preposição A (quem é bem-vindo é bem-vindo A). Em suma: na frase “BEM-VINDO À SÃO PAULO OKTOBERFEST” o acento grave é obrigatório, porque houve a crase.
      

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2 Comentários


  1. Ótimo texto. Gostaria de pedir para que o senhor comentasse sobre uma outra questão que caiu em um concurso militar para ingresso na Força Aérea Brasileira. A questão é a seguinte:

    (EEAR – 2016/2)
    Marque a alternativa correta em relação aos casos de crase apresentados.
    a) Realizou uma saída à francesa, após pedir um bife à cavalo. Ele já sabia não ter nenhum
    centavo quando decidiu ir à cantina.
    b) A francesa que havia conhecido na última viagem quando fui à Paris tornou-se minha
    amiga a distância.
    c) Vou a cidade, às compras, satisfazer às vontades de minha amada.
    d) Daqui à umas horas sairei à sua procura.

    A banca responsável pela aplicação do exame confirmou como gabarito da questão a opção A. Considerando que “bife a cavalo” seria um caso obrigatório de uso da crase.
    Inclusive, o livro de sua autoria (Curso Prático de Gramática) é utilizado como uma das bibliografias da matéria de língua portuguesa.

    Agradeço a atenção e aguardo sua resposta. Grande abraço!

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    1. João, as expressões adverbiais femininas ( à noite, à beça, à vista, etc.) são marcadas com acento grave. As masculinas (a prazo, a bordo, a gás, a tiracolo, a nado, etc.) não. Portanto, bife a cavalo deve ser grafado sem acento grave. N expressão à moda de também ocorre o acento grave (é uma expressão adverbial feminina), mesmo que o moda de venha subentendido: filé à Camões (isto é, à moda de Camões). Em bife a cavalo não se subentende à moda de: não é um bife à moda de cavalo. A mesma coisa em frango a passarinho. Então, embora o gabarito dê a alternativa a como correta, ela contem erro (à cavalo).
      Na b, à Paris não deve receber acento; faltou acento em à cidade e não deve haver acento em as vontades; na d, não deve haver acento em a umas hora.
      Enfim: todas as alternativas apresentam erro.

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