Mais uma vez ortografia

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Retorno ao tema ortografia, já tratado aqui no blogue, ampliando-o com novas reflexões sem pretensão de esgotar o assunto.

Todos temos dúvidas sobre grafia de palavras. Basta se deparar com uma palavra que não conhecemos ou que poucas vezes vimos grafada para vacilar quanto à grafia correta. Nesse caso, o caminho é recorrer a um bom dicionário ou ao Volp.

Muitas dúvidas de grafia decorrem principalmente do fato de que não há uma correspondência perfeita entre os sons da fala e os símbolos gráficos que os representam e que permitem visualizá-los. Além disso, embora se reja por alguns princípios, o sistema ortográfico é uma convenção.

A escrita é uma forma de fixação da fala que permite visualizá-la e preservá-la. Os antigos diziam verba volant, scripta manent, ou seja, as palavras voam, aquilo que está escrito permanece.

Há alguns sistemas de escrita. Os principais são a ideográfica (os ideogramas da língua chinesa, por exemplo), a silábica (os sinais gráficos representam sílabas, por exemplo o hiragana, sistema japonês de escrita silábica, que complementam os ideogramas de origem chinesa, usados pelos japoneses, os  kanji) e a alfabética (os sinais gráficos representam sons, os fonemas). Esse é o sistema de escrita que usamos. 

Para as escritas alfabéticas, o sistema ortográfico ideal seria aquele em que cada símbolo gráfico representasse um único fonema e que cada fonema fosse representado por uma única letra. Não há sistema de escrita alfabética em que isso ocorra.

Nas escritas alfabéticas, os sistemas ortográficos podem ser de base etimológica ou fonética. No primeiro caso, a grafia leva em conta a etimologia (a origem e a evolução da palavra no tempo); no segundo, leva-se em conta a pronúncia. O francês é um exemplo de língua que usa o sistema etimológico; o espanhol é exemplo de escrita com base fonética. O português é predominantemente fonético, mas muitas palavras são grafadas com base na etimologia. Entre elas, estão:

as que apresentam o h inicial:

  • homem (do latim: homine)
  • hábito (do latim: habitu)
  • horror (do latim: horrore)
  • habitar (do latim: habitare)
  • hostil (do latim: hostile)
  • hábil (do latim: habile)

Cumpre, no entanto, assinalar que o h etimológico desaparece quando se antepõe um radical ou prefixo que não venha ligado por hífen à palavra primitivamente grafada com h, como em:

  • desonra (derivado de honra)
  • desumano (derivado de humano)
  • reaver (derivado de haver)
  • lobisomem (composto de lobo + homem)

e as que apresentam o dígrafo sc no interior do vocábulo como nascer, crescer e descer em consonância com a etimologia latina dessas palavras (nascere, crescere e descere).

No entanto, quando o dígrafo sc etimológico está no início do vocábulo, grafa-se c (ou seja, adota-se o critério fonético): cena [do lat. scena] e ciência [do lat. scientia].

Enfim, não há como não ter dúvidas em relação à grafia correta de palavras. Acrescente-se ainda que a grafia correta envolve ainda o conhecimento do emprego de outros sinais gráficos além das letras, como os acentos gráficos, o til, a cedilha e o hífen.

Se na escrita alfabética, usamos as letras (e outros sinais gráficos) para representar os fonemas, não tem qualquer sentido separar, na escola, o ensino da fonologia da ortografia.

Tenho observado que se tem tratado o ensino da ortografia como um assunto independente e mais: tem-se restringido o ensino da ortografia ao emprego de algumas letras e dígrafos que representam um mesmo fonema: jeito / gente;  asa / azia , xícara / chave etc. Os desvios ortográficos, no entanto, vão muito além do emprego de letras diferentes que representam um mesmo som. São comuníssimos os desvios ortográficos por supressão de letras, por acréscimo de letras, por troca de letras que não sejam s e z, x e ch, j e g, o e u, e e i. Destaco alguns.

Desvios por acréscimo de letras

Acréscimo de semivogal: grafar treis em vez de três; rapaiz em vez de rapaz; Jesuis em vez de Jesus.

Acréscimo de fonema para quebrar grupo consonantal, a fim de facilitar a pronúncia:  adivogado ou adevogado em vez de advogado; pineu ou peneu em vez de pneu; recepição em vez de recepção.

Desvios por supressão de letras

Redução de dois fonemas de um ditongo a um único fonema. Nesse caso, suprime-se a semivogal. É o que ocorre em: caxa em vez de caixa; pedrero em vez de pedreiro; bestera em vez de besteira; estô em vez de estou.

Supressão de sílaba da palavra: xicra em vez de xícara; abobra em vez de abóbora.

Apagamento do R final: vivê em vez de vivet, comprá em vez de comprar.

Apagamento da nasal final: viage em vez de viagem;  vertige em vez de vertigem; Milto em vez de Mílton; Nelso em vez de Nélson.

As trocas de letras não se reduzem a usar j no lugar de g; x no lugar de ch; s no lugar de z. Observam-se com frequências casos de:

troca do r por l: malmita em vez de marmita;

troca l por r do praca em vez de placa;  repúbrica em vez de república;

troca do l em geral em final de sílaba pelo u que representa a semivogal /w/: maudade em vez de maldade; paumito em vez de palmito;

troca do dígrafo lh por i: paia em vez de palha; óia em vez de olha; fia em vez de filha.

Evidentemente, não se trata de passar aos alunos uma nomenclatura técnica especifica para explicar essas ocorrências. O que se tem de mostrar é que fala e escrita são sistemas distintos. Não se escreve como se fala.

Na fala, é comum que ocorram: acréscimos, supressões, trocas de fonemas que não reproduzidos graficamente quando se observa uma escrita ortográfica. Mais importante: pelo exemplos apresentados, observa-se que há uma regra nesses acréscimos, supressões e trocas de fonemas, tanto que existe uma nomenclatura específica para nomeá-los: monotongação (pedrero), rotacismo (repúbrica),  epêntese (pineu), deslaterização (fia), apócope (comprá), síncope (abobra), etc. Cabe explicar aos estudantes esses casos sem recorrer a uma nomenclatura técnica específica.

Evidentemente, o assunto ortografia não se esgota aqui. Voltarei ao tema brevemente.

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