Mentiras que parecem verdades

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O título deste artigo foi tomado por empréstimo a um livro de Umberto Eco e Marisa Bonazzi. A coincidência entre um e outro restringe-se exclusivamente ao título. Quanto ao conteúdo tratam de temas diferentes. O livro faz uma análise de livros didáticos italianos; o artigo discute a questão da verdade e da mentira nos discursos literários e nas fake news.

Os dicionários definem ficção como “ato ou efeito de fingir”, “criação imaginária” (Houaiss); “simulação”, “fingimento”, “criação ou invenção de coisas imaginárias” (Aurélio), portanto ficcional se opõe a real. Uma obra de ficção não relata um fato ocorrido no mundo real, mas algo criado pela imaginação.

Uma passagem da novela A hora e a vez de Augusto Matraga é exemplar nesse sentido. O narrador, adotando um processo não costumeiro, faz questão de deixar explícito o caráter fictício da matéria narrada. Nesse caso, ao contrário do título deste artigo, trata-se de uma mentira que deve parecer mentira mesmo e assim deve ser lida e interpretada.

E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor (ROSA, 1995, p. 443, destaques acrescidos).

Há, evidentemente, narrativas de ficção que se baseiam em fatos reais. Embora isso ocorra com mais frequência em narrativas cinematográficas, não são raros, na literatura, exemplos de narrativas baseadas em fatos reais, especialmente num gênero que se convencionou chamar de jornalismo literário, em que o rompimento com o caráter ficcional da literatura é explicitado. São narrativas de acontecimentos realmente  ocorridos que tiveram grande repercussão, tratados literariamente como O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, O jornalista e o assassino, de Janet Malcolm, e A sangue frio, de Truman Capote, que já no subtítulo traz a seguinte informação: “relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências” (CAPOTE, 2003, p. 3, destaque acrescido).

No domínio das narrativas apoiadas no real, há ainda as biografias, autobiografias, livros de memórias e romances de formação que se inserem na esfera literária como Infância e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, os sete volumes das memórias de Pedro Nava, Viver para contar, de Gabriel García Márquez, De amor e trevas, de Amós Oz, e os três volumes de Os diários de Emílio Renzi, de Ricardo Piglia.

Fora da esfera literária, as chamadas fake news são também exemplos de narrativas ficcionais que se ancoram em acontecimentos reais. O enunciador da notícia mentirosa, para conseguir a adesão do destinatário, parte de um fato real e o adultera com a intenção deliberada de enganar, de desinformar.

São várias as estratégias discursivas para levar o destinatário a crer verdadeiro o que o destinador sabe ser falso. Os procedimentos mais comuns são a descontextualização de falas, a atribuição a um determinado locutor fala não dita por ele, a mesclagem e adulteração de imagens, a manipulação do contexto, a ancoragem em elementos do real para dar concretude ao texto e, assim, produzir efeitos de sentido de verdade.

O desmascaramento das fake news pode ser feito observando-se alguns procedimentos, como verificar quem publica e onde publica. Deve-se desconfiar de mensagens que circulam em grupos de aplicativos de transmissão de mensagens sem qualquer indicação de autoria e de fonte. Além disso, devem-se observar as relações intertextuais que a notícia guarda com outras com as quais dialoga a fim de checar se o que é veiculado é confirmado ou desmentido por outras fontes como órgãos de imprensa que gozam de credibilidade ou agências de verificação de notícias.

Por fim, deve-se concentrar na análise interna do texto da notícia, observando sua organização linguística e discursiva. Fake news costumam apresentar problemas na organização do texto como falta de coesão e coerência, erros gramaticais grosseiros, descontextualização e alteração de falas, dados falsos, legendas que não correspondem à imagem, etc.

Referências

CAPOTE, T. A sangue frio: relato verdadeiro de um homicídio múltiplo e suas consequências. Tradução: Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

ROSA, J. G. Famigerado. In: ROSA, J. G. Primeiras estórias. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001. p. 49-52.

As ideias contidas neste texto estão desenvolvidas no artigo “Mentiras que parecem verdades”, publicados na Revista Estudos Universitários, da Universidade Federal de Pernambuco. Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.

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