Morfema e alomorfe

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Morfemas são elementos mínimos providos de significação que entram na constituição das palavras.

Na palavra gatinhos, é possível reconhecer quatro segmentos que correspondem a quatro unidades mínimas de sentido, ou seja, quatro morfemas:

gat– : morfema que contém o significado básico da palavra, isto é, de mamífero doméstico, da família dos felídeos;

inh: morfema que indica diminuição, ou seja, trata-se de um felídeo de tamanho pequeno;

o: morfema que indica o gênero da palavra, no caso, masculino. Trata-se felídeo macho, portanto.

s: morfema que indica que se trata de plural, ou seja, a palavra não se refere a um só animal felídeo macho, porém a mais de um. 

Como assinalei, morfemas são unidades significativas de que se compõem as palavras. Há palavras que apresentam um único morfema e que, portanto, são indivisíveis em unidades menores como sol, mar, luz, , capim, etc.

Há dois tipos gerais de morfemas:

  1. Lexicais (lexemas): aqueles que remetem a um referente extralinguístico, ou seja, existente no mundo, real ou imaginado.
  2. Gramaticais (gramemas): aqueles que não têm um referente no mundo real ou imaginado. Esse tipo de morfema refere-se a conceitos que fazem parte do “mundo” língua. Sua presença ou ausência indicam classificações formais como as categorias de gênero, número, pessoa, tempo, modo. Indicam ainda a que classe pertencem os verbos (conjugação) e os nomes. Como se referem a categorias gramaticais, ao contrário dos morfemas lexicais, o número desse tipo de morfemas é reduzido.

Na palavra cavalos, temos três unidades de sentido, ou seja, três morfemas: caval, o e s. O morfema caval– é um morfema lexical, pois remete a um referente extralinguístico, a algo do mundo real (mamífero da família dos equídeos). Os morfemas –o e –s não fazem referência a elementos do mundo real, mas há categorias do “mundo” da língua, a noção de gênero masculino e de número plural. São morfemas gramaticais, portanto. São os seguintes os morfemas do português:

Radical: também chamado de semantema. É um morfema lexical que contém a base da significação da palavra. 

ferro               menino                        livro              

ferragem       menininho                livreiro                     

ferreiro          meninice                   livraria                     

Nesses exemplos, os radicais estão destacados: ferr-, menin– e livr-.  Note que o radical, além de ser a base de significação da palavra, é o elemento comum às palavras de uma mesma família, que são chamadas de cognatas.

Nos exemplos acima, exemplifiquei usando apenas nomes, mas atente que os verbos também possuem radical:

canto              vendi                          dormia

cantei             vendeste                    dormimos

cantamos      vendêssemos            dormiremos

Nesses exemplos, os radicais estão destacados: cant-, vend-, dorm-. Para se obter o radical de um verbo, basta tirar a terminação –ar, –er, –ir do infinitivo. Para se obter o radical de nomes, o procedimento mais prático consiste em listar palavras da mesma família (flexões e derivadas delas) e ver qual é o elemento comum, como foi feito acima com as palavras ferro, menino e livro.

Exemplificando. Suponha que você queira saber o radical da palavra dente. Listando palavras da mesma família: dental, dentista, dentifrício, dentadura, dentuço, dentinho. O segmento que aparece em todas elas é dent-. Esse, portanto, é o radical.

Como o radical é base comum a palavras de mesma família, ele não sofre alteração em sua forma: pedra, pedreiro, pedrada, pedraria, pedregulho, pedrinha. Como se pode notar, o radical pedr– se mantém em todas as formas. Se você conjugar o verbo cantar em todos os tempos e modos, verá que o radical desse verbo, cant-, não se altera: cantei, cantamos, cantarei, cantasse, cantaria, cante, cantando, etc.

Há casos, no entanto, que o radical altera a forma por questões de eufonia (bom som). O radical do verbo ouvir é ouv– (obtém-se o radical de um verbo, tirando-se as terminações –ar, –er, –ir do infinitivo: ouvir – ir = ouv-). Na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (e nas formas daí derivadas), o radical ouv– assume outra forma ouç-. Falamos eu ouço e não eu ouvo. Essa outra forma que o radical de uma palavra pode se apresentar chama-se alomorfe.

Em alomorfe, temos dois radicais gregos: állos = outro e morphé  = forma. Quando ocorre alomorfia, a forma mais frequente é considerada a forma base ; a menos frequente é o alomorfe. Assim, a desinência –va de imperfeito da 1ª conjugação (cantava, amava, etc.) é a forma base e a desinência -ve (cantáveis, amáveis, etc.), o alomorfe. Na alomorfia ocorre mudança de forma (morfe), mas não de significado.

O radical do verbo pedir é ped– (pedir – ir = ped-), mas em algumas formas o verbo pedir apresenta o alomorfe peç– (eu peço e não eu pido). O radical do verbo fazer é faz– (fazer – er = faz-), em algumas formas, no entanto, o verbo fazer apresenta o alomorfe faç– (faço, façamos e não fazo, fazamos).

Por fim, não se deve confundir o radical da palavra com a raiz da palavra. O estudo da raiz de palavras é feito quando se estuda a língua do ponto de vista diacrônico, isto é, de sua história, das mudanças que língua sofreu no decorrer dos anos até chegar à forma atual. Isso significa que estudar a raiz de uma palavra é buscar sua origem numa língua antiga, grego ou latim, por exemplo. Isso diz respeito à filologia, à gramática histórica e à gramática comparativa, assuntos que exigem conhecimentos especializados e profundos, que não são objeto de estudo neste livro.

Apenas para título de esclarecimento. As palavras signo, insígnia, insigne, insignificante, ensinar, persignar, assinar procedem de uma mesma raiz latina, sign-, cujo sentido é ‘sinal’, ‘marca distintiva’. Assim, levando em conta a raiz latina, temos os seguintes sentidos:

assinar: marcar com uma sinal (nome ou brasão);

insígnia: sinal distintivo que é atributo de poder, de dignidade;

insignificante: desprovida de sinal que lhe confere importância;

persignar: benzer-se fazendo um sinal;

ensinar: pô uma marca em alguém;

signo: sinal.

Por fim, como assinalei, há palavras que não podem ser divididas em unidades menores, pois só apresentam um morfema, que será evidentemente o radical. Podemos ter palavras sem afixos e desinências, mas não há palavra sem que haja o radical, porque ele é a base da palavra. 

Desinências são morfemas pospostos ao radical que indicam as categorias gramaticais de número, gênero, pessoa, tempo e modo). A flexão das palavras é assinalada pelas desinências, ou seja, desinências não formam palavras, apenas indicam se a palavra é masculina ou feminina, se está no plural; se o verbo está na 1ª pessoa, se está no pretérito, no subjuntivo, etc. Como as desinências exprimem as flexões de uma palavras, são chamadas de morfemas flexionais.

As desinências podem ser:

  1. nominais: indicam as categorias de gênero (masculino / feminino) e de número (singular / plural) nos nomes;
  2. verbais: indicam, nos verbos, as categorias de número (singular, plural) e pessoa ( 1ª , 2ª, 3ª ) e as categorias de tempo (presente, pretérito, futuro) e modo (indicativo, subjuntivo, imperativo). Nos verbos, desinências que exprimem número e pessoa se acumulam. O mesmo ocorre com as que indicam modo e tempo, por isso dizemos desinências número-pessoais para as que indicam número e pessoa e modo-temporais para as que indicam modo e tempo. Trata-se de desinências cumulativas.

Na palavra alunas, um nome, temos:

alun-: radical;

a: desinência nominal (indica o gênero: feminino);

s: desinência nominal (indica o número: plural)

Em cantássemos, temos:

cantá-: tema (ver adiante);

sse: desinência modo-temporal (indica o tempo e o modo: imperfeito do subjuntivo);

mos: desinência número-pessoal (indica a pessoa: 1ª e o número: plural)

 Agora vou apresentar um conceito muito importante: o de desinência zero e vou usar o símbolo Ø para representá-la.

No par doutor / doutora, a distinção de gênero (masculino / feminino) se faz pela presença da desinência –a, que indica gênero feminino, na forma doutora. A forma do masculino, doutor, não é marcada por desinência, ou melhor dizendo, na forma masculina, tem-se a desinência zero ( Ø ).

Assim:

            radical                                               desinência de gênero

            doutor                                                Ø 

            doutor                                                -a

Outro exemplo. No par doente / doentes, a distinção de número (singular / plural) é feita pela desinência –s, presente em doentes. A forma do singular, doente, não é marcada por desinência, ou melhor dizendo, na forma doente, tem-se desinência zero ( Ø).

Vogal temática: são vogais que se juntam ao radical incluindo-o num determinada classe. Nos verbos, as vogais temáticas são a, e, i e indicam a que conjugação pertence o verbo.

· cantar: vogal temática A: 1ª conjugação;

· vender: vogal temática E: 2ª  conjugação;

· partir: vogal temática I: 3ª conjugação.

Obs.: no verbo pôr ( e seus derivados) a vogal temática é –e, pois sua forma antiga era poer. A vogal temática de pôr ( e derivados) pode ser observada em algumas formas desse verbo: puser, puseste, pusera, puséssemos. Como a vogal temática de pôr é –e, esse verbo pertence à segunda conjugação. Pode observar também a vogal temática –e em nomes da família de pôr, como poente e poedeira.

O radical já acrescido da vogal temática recebe nome de tema. Nos verbos, obtém-se o tema suprimindo a desinência do infinitivo (-r). Dessa forma, os temas dos verbos cantar, vender e partir são, respectivamente, canta (cantar – r), vende (vender – r) e parti (partir – r). O tema é o radical já pronto para receber as desinências. Evidentemente, se for possível agregar a desinência diretamente ao radical, a vogal temática não será necessária, como em:

radical                                 desinência

cant-                                                ei                                

vend-                                               i                     

part-                                                 o

A vogal temática também aparece nos nomes. Nesse caso, são as vogais a, e, o, sempre átonas. Há, em português, três classes de nomes:

· os com a vogal temática a: artista, colega, telefonema;

· os com a vogal temática e: gerente, triste, hóspede, cliente, estudante;

· os com a vogal temática o: povo, corpo, cabelo, livro, tribo

Vimos que –a e –o também podem ser desinências de gênero, por isso esclareço a seguir o critério um critério para se distinguir as vogais temáticas –a e –o das desinências de gênero –a e –o.

Em palavras, como artista, colega e telefonema, a vogal –a não se agrega ao radical para marcar o gênero. Veja que não há oposição artista / *artisto; colega / * colego; telefonema / * telefonemo. Note ainda que, em artista e colega, a indicação de gênero do ser representado pelo substantivo será dada pelo artigo (ou outro determinante): o artista, a artista, artista talentoso, artista talentosa. Nessas palavras, tem-se a vogal temática –a e não a desinência feminina -a.

Em palavras como povo, corpo, cabelo, livro e tribo, o fonema vocálico átono final -o NÃO é desinência nominal de gênero. Observe que não se realizam as oposições povo /pova; corpo / corpa; cabelo / cabela; livro / livra; tribo / triba. Nesse caso, temos a vogal temática –o e não a desinência de gênero –o.

As pessoas confundem as vogais temáticas –o e –a com desinências de gênero por um motivo bastante simples. A quase totalidade dos nomes cuja vogal temática é –o é masculina, assim como a maioria dos nomes cuja vogal temática é –a é feminina. No entanto, na nossa língua, há nomes masculinos terminados em -a, como (o) telefonema, (o) programa, (o) problema, (o) edema, (o) clima, (o) mapa, etc. e nomes femininos terminados em -a, como (a) tribo, (a) libido, (a) virago e alguns substantivos formados por abreviação (ver adiante), como (a) foto, (a) moto, (a) lipo, etc. 

As terminações -o e -a são desinências de gênero apenas quando for possível a alternância masculino / feminino ( aluno / aluna; gato / gata). Não sendo possível a alternância, -o e -a são vogais temáticas: carrasco / * carrasca; caderno / caderna; criança / *crianço; criatura / * criaturo.

Em resumo: as vogais -o e -a são desinências de gênero, quando, para exprimir mudança de gênero, é possível fazer a comutação com -a e -o, respectivamente ( aluno / aluna). Se a comutação não for possível, -a e -o são vogais temáticas (onça / *onço; globo / *globa).

Por fim, em pares como professor / professora; francês / francesa; mestre / mestra; juiz / juíza, na forma feminina, tem-se a desinência -a; na forma masculina, a desinência zero (Ø).

Obs.1: Há nomes atemáticos, isto é, sem tema. São os terminados em a, e , i, ou tônicos: maracujá, café, jiló, saci, jiló, urubu.

Obs.2: em certos nomes terminados em consoante, a vogal temática não aparece no singular (está latente), mas pode ser observada no plural: mar / mar-e-s; mal / mal-e-s.

Obs. 3: Esses três morfemas, radical, vogal temática e desinência, têm uma ordem fixa na palavra. Na língua portuguesa, aparecem sempre nessa ordem.

Afixos: morfemas lexicais que se juntam ao radical para formar palavras novas. Os afixos são morfemas derivacionais, pois sua função é derivar palavras a partir de outras. Lembre-se de que as desinências não derivam palavras, apenas indicam flexões, por isso mesmo são chamadas de morfemas flexionais. Os afixos se dividem em:

  1. prefixos: quando vêm antes do radical

subemprego, refazer, infeliz

  • sufixos: quando vêm depois do radical

livrinho, jornalista, felizmente

 Os prefixos são, geralmente, de origem grega ou latina. Como você deve ter notado, o acréscimo de afixos altera o sentido da palavra a que ele foi agregado. Refazer não é a mesma coisa que fazer; um jornalista não é a mesma coisa que um jornal.

Os sufixos se dividem em dois grandes grupos: a) sufixos nominais, os que formam substantivos e adjetivos (jornal + ista = jornalista (subst.); pesar + oso = pesaroso (adj.); b) sufixos verbais, os que formam verbos (atual + izar = atualizar, got  + ejar = gotejar). Há um único sufixo que forma advérbio em português, -mente: fiel + mente = fielmente, sabia + mente = sabiamente. Nos adjetivos que apresentam uma forma para o masculino e outra para o feminino, o sufixo -mente se junta à forma feminina do adjetivo: atabalhoadamente, sossegadamente, tranquilamente.

Não há como confundir sufixo com desinência. Sufixos formam palavras novas, às vezes de classe gramatical diferente da primitiva: leal (adj.) – lealdade (subst.); terceiro (num.) – terceirizar (verbo); cruz (subst.) – cruzar (verbo); velho (adj.) – velhice (subst.); confiar (verbo) – confiança (subst.); rápido (adj.) – rapidamente (adv.). Desinências não formam novas palavras; apenas indicam as flexões, isto é, variações que indicam gênero, número, pessoa, tempo e modo: aluna, doentes, cantei, cantava, cantássemos (o –sse indica modo e o –mos, pessoa e número), etc.

Assim como o radical, outros morfemas podem apresentar alomorfe. A desinência –ra, que indica pretérito perfeito do indicativo (amara, amaras, amáramos, vendera, vendêramos, partira, partíramos), na segunda pessoa do plural alterna para –re: amáreis, vendêreis, partíreis. O mesmo ocorre com a desinência modo-temporal –va, que indica pretérito imperfeito do indicativo nos verbos da primeira conjugação. Na segunda pessoa do plural, ela assume a forma –ve: amava, amavas, amava, amávamos, amáveis, amavam.

Os afixos também apresentam alomorfes. O prefixo vice, cujo sentido é de substituição, no lugar de, que aparece em vice-reitor, vice-presidente, em visconde aparece sob a forma do alomorfe –vis. Dizemos visconde e não vice-conde. O prefixo i-, que exprime negação como em ilógico, em algumas palavras aparece sob a forma do alomorfe in– (grafado im antes de b ou p): infeliz, insatisfeito, imprudente, imberbe. O sufixo –inho, que indica diminuição, em diversas palavras apresenta o alomorfe –zinho. Dizemos livrinho, casinha (sufixo –inho), mas não dizemos cafeinho e indioinho, mas cafezinho e indiozinho (alomorfe –zinho). Alguns linguistas e gramáticos, no entanto, não consideram –zinho um alomorfe de –inho, mas que o -z funciona como uma consoante de ligação (ver adiante).

Obs.: uma mesma palavra pode apresentar mais de um afixo, por exemplo, desrespeitosamente, enterrar, deslealdade, subempregar, anoitecer, supermercadinho.

 Em síntese: os morfemas, em português, são quatro:

· radical: morfema lexical que contém a base de significação da palavra;

· desinência: morfema gramatical que indica flexão;

· vogal temática: morfema gramatical que inclui a palavra numa determinada classe. Nos verbos são representadas pelas vogais a, e, i. Nos nomes, são representadas pelas vogais a, e, o átonas.

· afixo: morfema lexical pelo qual se derivam palavras de outras.

 Excetuando o radical, que pode ter existência autônoma na língua (mar e sol, por exemplo), os demais morfemas são chamados de formas presas, porque não têm existência autônoma na língua, pois estarão sempre agregados a um radical.

Em algumas palavras pode aparecer, intercalada entre dois morfemas, uma vogal ou uma consoante ligando um ao outro, por isso são chamadas de vogal ou consoante de ligação. São elementos desprovidos significação; não são morfemas, portanto. Sua função é apenas facilitar a pronúncia.

bibli – ó – filo, chá – l –  eira

No primeiro exemplo, a vogal de ligação o se coloca entre dois radicais (biblio e filo). No segundo, a consoante de ligação l se coloca entre o radical (chá) e o sufixo (eira). Veja que tanto o fonema vocálico o quanto o fonema consonantal l, nessas palavras, não têm nenhum significado.

Funcionam como vogais de ligação i e o. As consoantes de ligação que ocorrem com maior frequência são o l e o z.

facil – i –  dade, gas – ô – metro, cha – l – eira, bambu –  z –  al

Por fim, um mesmo fonema (e sua representação gráfica por uma letra) poderão  representar morfemas diferentes. Tome-se por exemplo os fonemas /o/, /s/, /e/.

livro: o é uma vogal temática;

canto: o é uma desinência verbal que indica primeira pessoa do singular do presente do indicativo;

horas: s é uma desinência que indica número plural;

estudas: s é uma desinência que indica segunda pessoa do singular;

mares: e é uma voga temática;

falemos: e é uma desinência que indica tempo e modo (presente do subjuntivo).

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