Narrador: focalização, foco narrativo, ponto de vista

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Neste artigo, apresento considerações sobre o narrador e foco narrativo, assunto que discuto com detalhes e farta exemplificação no livro O conto na sala de aula, escrito por mim em parceria com Jessyca Pacheco, publicado em 2017, pela Editora InterSaberes.

 

O conto na sala de aula, de Ernani Terra e Jessyca Pacheco, Editora InterSaberes, 2017

Em termos gerais, foco narrativo é a perspectiva de um narrador em face daquilo que é capaz de narrar levando-se em conta o que ele vê qualitativa e quantitativamente. O narrador, que não deve ser confundido com o autor, estabelece uma relação comunicativa entre o narrado e o público (o auditório, o leitor). Trata-se de uma voz que se esconde atrás do narrado e que fala ao leitor.

Enunciação

O texto é fruto da enunciação, instância pela qual um sujeito se apropria da língua e a converte em discurso (o enunciado ou texto linguistico). Pela enunciação instalam-se as categorias de pessoa, espaço e tempo, por isso diz-se que a enunciação é a instância do eu-aqui-agora. As relações entre enunciação e foco narrativo são estreitas. Considere que, em uma narração em 1a.  pessoa, o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado coincidem, o que não ocorre em uma narração em 3a. pessoa, na qual o sujeito da enunciação é um e o do enunciado é outro.

Debreagem

Dá-se o nome de debreagem ao procedimento pelo qual se instalam no texto as categorias de pessoa, tempo e espaço. Do ponto de vista da categoria pessoa, tem-se debreagem enunciativa, quando os textos forem escritos em 1a. pessoa e enunciva, quando forem escritos em 3a. pessoa.  Os efeitos de sentido serão diversos. Em uma narração em 1a. pessoa), há uma aproximação entre enunciado e enunciação – temos um simulacro da enunciação –, o que não ocorre na narração em 3a. pessoa, em que há um afastamento do enunciado da instância da enunciação. É por essa razão que se produzem efeitos de sentido diferentes em cada uma delas. Nas narrações em 1a. pessoa, o efeito de sentido é de subjetividade, enquanto nas de 3a. o efeito é de objetividade.Em termos mais gerais, o narrador pode fazer parte da história narrada como personagem, principal ou secundária – portanto, sua visão dos acontecimentos será sempre uma visão de dentro –, ou pode não ser personagem da narração, caso em que terá uma visão de fora dos acontecimentos. Isso, grosso modo, caracteriza dois tipos de narração: em 1a. e em 3a. pessoa.

Foco narrativo ou focalização

Entretanto, essa classificação não cobre todas as possibilidades que tem o narrador para contar a história. É preciso observar que, de dentro ou de fora, o narrador vê os acontecimentos de uma determinada perspectiva – pode estar mais próximo ou mais distante dos acontecimentos. A posição que ele ocupa em relação ao que narra determina o que pode e o que não pode narrar.

O teórico Wayne Booth, no livro A retórica da ficção (1980), defende que há diversos modos de narrar uma história e que a escolha de um ou de outro é determinada pelos efeitos de sentido pretendidos. É importante saber que autor e narrador não se confundem, o primeiro tem existência empírica, o segundo é uma criação ficcional do autor. Booth afirma que, nas narrativas, o autor não desaparece completamente, uma vez que ele se esconde atrás da voz daquele que narra, seja ou não personagem da história. Para o teórico, esse autor que se mascara atrás da voz de um narrador é o autor implícito.

O autor implícito é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as personagens envolvidas na história.

Outra contribuição importante para o estudo do foco narrativo foi dada por Jean Pouillon, que, no livro O tempo no romance (1974), apresenta as perspectivas que o narrador pode ter: visão com, visão por trás e visão de fora. Na visão com, o narrador é personagem da história; trata-se, portanto, de uma narrativa em 1a. pessoa. Por ser personagem da história, tem uma visão limitada sobre os eventos narrados. Na visão por trás, o narrador não é personagem e tem um saber absoluto sobre o que narra, sendo capaz de narrar, inclusive, os pensamentos das personagens. É nesse sentido que se diz que se trata de um narrador onisciente (do latim omni = todo, todos, tudo + sciente = que sabe), cujo significado é “o que tem conhecimento de tudo, aquele que tem um saber absoluto”. Na visão de fora, o narrador não é personagem da história e não tem a onisciência, por isso limita-se a narrar os fatos sem adentrar no interior das personagens.Na visão com, ou focalização interna, tem-se o ponto de vista de um narrador que faz parte da história. Por ser personagem, normalmente tem uma visão restrita dos acontecimentos narrados, na medida em que só pode narrar aquilo que está a seu alcance, seja o que vê, seja o que está dentro de seu campo de consciência; portanto, não é um narrador privilegiado.

Esse narrador não precisa ser necessariamente a personagem principal. Pode ser uma personagem secundária, como o Dr. Watson nos contos de Conan Doyle em que a personagem principal é Sherlock Holmes. Na visão de fora, ou focalização externa, como o próprio nome indica, a perspectiva do narrador é exterior, o que significa que narra os acontecimentos sem deles participar; portanto, não é personagem da história, como ocorre na visão com, ou focalização interna. Nesse tipo de foco narrativo, o narrador também não tem uma visão privilegiada do que narra, limitando-se a narrar aquilo que qualquer outro hipotético observador de fora também veria. Esse foco narrativo é menos usual do que a focalização interna e a onisciente.

Na visão por trás, ou focalização onisciente, tem-se um narrador cujo conhecimento da história e das personagens que dela participam é praticamente ilimitado. Nesse caso, ao contrário do que ocorre na focalização externa, o narrador não narra apenas aquilo que está em seu campo de observação. É capaz também de entrar no íntimo das personagens e revelar seus pensamentos mais escondidos. Como na narração de focalização externa, o narrador não é personagem da história narrada.

O fato de, na focalização onisciente, o narrador ter conhecimento praticamente de tudo não significa que ele vá narrar tudo. Na realidade, o que ele faz é uma seleção daquilo que será narrado, o que significa que procede à omissão intencional de acontecimentos que não julga relevantes ou que espera que o leitor reconstitua por si só. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, em seu Dicionário de narratologia, fazem uma classificação do narrador levando em conta o fato de ele pertencer ou não à história narrada, também chamada de diegese e, no caso de pertencer, se é ou não o protagonista. Com base nesse critério, classificam o narrador em três categorias:

Autodiegético – Participa da história que narra como personagem principal.

Homodiegético – Participa da história que narra como personagem secundária.

Heterodiegético – Não participa da história que narra.

Norman Friedman apresenta uma tipologia mais ampla ao analisar o foco narrativo. Quanto ao narrador onisciente, faz a distinção entre o que chama de onisciente intruso e onisciente neutro. A diferença entre eles é que o intruso não se limita a narrar – ele também se introduz na narrativa por meio de comentários ligados ou não ao que está sendo narrado. O onisciente neutro não faz intrusões na narrativa, limitando-se a narrar os acontecimentos, o que confere um efeito de maior objetividade ao que narra.

Friedman identifica como narrador testemunha aquele que narra de dentro da história, como uma personagem secundária. Trata-se do equivalente ao narrador homodiegético, de focalização interna, de visão com. Quando o narrador é protagonista da história, Friedman lhe dá o nome de narrador protagonista. Assim, a diferença entre o narrador protagonista e o narrador testemunha reside apenas no papel exercido pela personagem que assume a função de narrador, se é ou não protagonista. Em Friedman, há também referência a narrativas em que há um esvaziamento da função do narrador, na medida em que não há propriamente alguém que narra. Nesse tipo de narrativa, o que sobressai é a voz interior da(s) personagem(ns). Quando a narrativa é a expressão do mundo interior de uma só personagem, na classificação em análise aqui, ocorre onisciência seletiva; no caso de a expressão interior ser de várias personagens, ocorre onisciência seletiva múltipla. Em ambos os casos, existe uma simbiose entre narrador e personagem(ns). Friedman faz referência ainda ao modo dramático de narrativa e ao modo câmera, no qual há exclusão total do narrador. Nesse caso, teríamos uma narrativa cinematográfica, em que se transmitem instantâneos de uma realidade, rompendo-se a temporalidade narrativa.

Destaco que, no ato da leitura e construção de sentido dos textos, mais importante do que dominar uma nomenclatura específica (focalização onisciente, narrador heterodiegético, visão por trás etc.) é perceber as diversas vozes que falam no texto, identificando-se quem fala, de onde fala, que perspectiva tem acerca do que fala e se intervém na narração para fazer comentários. É fundamental que, na leitura dos textos, perceba-se que o foco narrativo se altera no decorrer da narração. Um narrador onisciente intruso, por exemplo, não faz intrusões o tempo todo.Como deve ter sido observado, existem diferenças entre as nomenclaturas utilizadas. No livro O conto na sala de aula, Jessyca Pacheco e eu apresentamos um esquema simplificado em que reunimos os conceitos essenciais a respeito desse tema. Em outro artigo, voltarei ao tema.

 

 

 

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