O conto

Tempo de leitura: 8 minutos

Neste espaço, tenho comentado diversos contos. Alguns leitores me pediram que falasse não de um conto específico, mas do conto como gênero literário. Tenho um livro em parceria com Jessyca Pacheco em que tratamos do tema com exaustão. O livro se chama O conto na sala de aula, publicado pela Editora InterSaberes. Neste mês publiquei na Revista Metalinguagens do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) um artigo sobre o conto, para o qual remete o leitor, bastando clicar aqui. Nos parágrafos seguintes, apresento algumas considerações sobre o gênero conto, originalmente publicadas no meu livro Leitura do texto literário (Editora Contexto).

O conto é um gênero narrativo que costuma ser sido definido pela sua extensão, o que determina que possua, quanto à sua estrutura, características especiais, diferenciando-o de outras formas narrativas em prosa (novela e romance). Não há propriamente uma definição de conto, o melhor seria dizer que há teorias do conto, enquadradas numa teoria mais ampla, a narratologia, estudo das formas narrativas literárias e não literárias, tendo por fundamento os estudos da semiótica.

Mário de Andrade, para quem conto é aquilo que seu autor batizou de conto, já chamava a atenção para esse fato ao iniciar seu conto “Vestida de negro” com a seguinte afirmação: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”. Para Mikhail Bakhtin, os gêneros são formas relativamente estáveis, isso é visível quando se compara um conto recolhido pelos irmãos Grimm a contos de Cortázar, Hemingway, Borges, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, por exemplo. Por isso não proponho uma definição fechada de conto. Apoiado em alguns autores e teorias sobre o conto, apresento a seguir as características desse gênero literário, por meio de analogias a outras formas narrativas, particularmente o romance.

Narrativa condensada (em inglês é denominado short-story = história curta, literalmente), que apresenta um número pequeno de personagens, unidade de tempo restrito, normalmente centrado em um único evento, abdicando de análises minuciosas, digressões e descrições pormenorizadas. Por ser uma forma narrativa, o conto costuma ser analisado e definido em relação a outras formas de narrar, particularmente o romance. Se o romance é um gênero ligado à tradição escrita, o conto tem suas origens na tradição oral, no ato de contar histórias, que eram passadas de geração a geração. Esse conto de tradição oral é o que André Jolles denomina de uma forma simples, ou seja, aquela que mantém sua forma através dos tempos, ao contrário das formas artísticas, que são as criadas por um autor e que não podem ser recontadas sem que se percam suas peculiaridades. Exemplificando: uma adivinha (o que é o que é?), para Jolles, é uma forma simples, pode-se recontá-la inúmeras vezes e ela manterá sempre a mesma forma; já um conto, como “A cartomante”, de Machado de Assis, é uma forma literária. Quando é contado para alguém, ele já não é mais o mesmo conto escrito por Machado de Assis. Ao conto transmitido oralmente, dá-se o nome de conto popular. Grosso modo, as formas simples e as formas literárias de Jolles equivaleriam aos gêneros primários e secundários de Bakhtin.

José Paulo Paes ressalta que formas literárias atuais têm sua origem em formas simples; por exemplo, o conto policial seria uma forma evoluída da adivinha. Para Jolles, o conto só adquiriu o status de forma literária a partir do momento em que os irmãos Grimm reuniram uma coletânea de narrativas sob o título de Contos para crianças e família, em 1812. A passagem da forma simples conto popular para a forma literária está ligada à passagem do contador de histórias para o narrador ficcional, o que implica uma mudança na forma de recepção: no conto popular a narrativa é dirigida a um auditor (a transmissão é oral); no escrito, a um leitor. Nos contos orais, a recepção é em tempo real; no conto escrito, é diferida. Essas mudanças trazem consigo outras, como a mudança da linguagem e a expansão do público receptor, que passa a ser mais heterogêneo, uma vez que a circulação dos textos passa a não se restringir apenas à comunidade sociocultural para quem as histórias eram narradas.

Outra distinção entre o conto popular e o conto literário reside na autoria, enquanto os primeiros são anônimos, os segundos possuem autoria definida. Os contos populares têm servido de matéria-prima para a elaboração de obras literárias, por isso é comum encontrar ecos ou referências diretas ou indiretas a eles em contos e romances modernos. A personagem Oskar do romance O tambor, do escritor alemão Günther Grass, é inspirado no Pequeno Polegar. Guimarães Rosa inicia seu conto “Conversa de bois” fazendo referência aos contos maravilhosos: “Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas”. Nos contos do escritor moçambicano Mia Couto, em que realidade e fantasia se fundem, ressoam vozes de histórias da tradição oral africana.

Nádia Battella Gotlib, na obra Teoria do conto,  ressalta que o conto difere-se do relato. Para essa autora, o relato traz de volta algo que ocorreu, enquanto no conto há narração de fato criado, inventado, ou seja, o que caracteriza o conto é o fato de ser uma narrativa ficcional. O romance é cumulativo, nele há uma sucessão de eventos que se encadeiam em direção ao clímax, o ponto de maior tensão na narrativa, e, posteriormente, ao desfecho ou desenlace, que é a resolução do conflito com a consequente volta à situação de estabilidade. O conto, por ser limitado em sua extensão, procura captar um momento, um instantâneo.

O célebre contista Júlio Cortázar compara o romance a um filme enquanto o conto é comparado a uma fotografia. Para esse autor, o romance realiza uma abordagem horizontal; o conto, uma vertical. Por ser uma narrativa condensada, o conto elimina tudo o que acessório, centrando-se naquilo que é essencial à trama. O escritor russo Tchekhov, referindo-se a esse gênero diz: “se num conto aparece uma espingarda, ela tem que disparar”. Cortázar tem uma frase que ilustra bem a diferença entre o conto e romance: “o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute”.

Para outro grande contista e também teórico do conto, Edgar Allan Poe, a extensão é requisito fundamental do conto, já que esse gênero literário deve buscar uma unidade de efeito, enganar, aterrorizar, encantar ou deslumbrar, e essa só pode ser conseguida se o texto for possível de ler numa assentada, de meia a duas horas. Para Poe, o trabalho de um contista deve ser racional, tudo deve ser pensado a fim de se obter o resultado pretendido, que é criar o interesse do leitor, para isso “inventará os incidentes, combinando-os da maneira que melhor o ajude a conseguir o efeito preconcebido”.

O conto, por ser um gênero narrativo, assim como a novela e o romance, está centrado em três pilares: evento, personagem e espaço, além do fato de a narrativa se desenrolar num tempo cronológico ou psicológico. Tempo cronológico é o tempo físico, mensurável, objetivo; tem, portanto, caráter quantitativo; tempo psicológico é o tempo vivido interiormente, é subjetivo e não coincide com o tempo cronológico; tem caráter qualitativo. A experiência demonstra que às vezes o tempo cronológico de um minuto parece durar horas e, outras vezes, aquilo que ocorreu em horas parece ter transcorrido em minutos. A forma como esses três pilares são tratados no conto e no romance servem de elemento distintivo entre esses dois gêneros. O conto, ao contrário do romance, normalmente centra-se num evento único, possui poucas personagens e desenrola-se num espaço limitado. Outra diferença fundamental entre romance e conto é que, no conto (e também na novela), o final coincide com o clímax, ao passo que, no romance, o clímax não está no final, mas num momento anterior. No romance, o final corresponde ao desenlace ou desfecho, que é, como se viu, o evento ou conjunto de eventos que, pondo fim ao conflito, encerra a narrativa. Em alguns romances, o desenlace pode vir seguido por um epílogo, capítulo ou comentário breve sobre o destino das personagens principais. Para o crítico russo Boris Eikhenbaum, a existência de um epílogo é critério que diferencia o romance do conto, por isso é raro, um final inesperado no romance, fato comum nos contos.


2 Comentários


  1. Agradeço muito pelo artigo aqui no seu blog. Estou na reta final da escrita da minha dissertação de mestrado e minha banca solicitou que eu acrescentasse informações sobre o gênero conto. O tempo muito curto, não permitiria que eu lesse todos os livros citados, mas o que o senhor escreveu aqui sobre o conto foi o suficiente para eu concluir minha dissertação. Amei o texto.

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    1. Emanuela, sucesso em sua dissertação. Tenho um livro sobre o conto. Talvez possa ajudá-la. Seguem as referências:
      O CONTO NA SALA DE AULA, de Ernani Terra e Jessyca Pacheco. Editora InterSaberes.

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