O leproso, um conto de Miguel Torga

Tempo de leitura: 4 minutos

No último domingo de janeiro, é comemorado o Dia Nacional de Combate e Prevenção da Hanseníase. A data foi instituída pela Lei nº 12.135/2.009 com o objetivo de chamar a atenção da sociedade e das autoridades de saúde sobre a importância da prevenção e do tratamento adequado da doença. As ações de conscientização para a prevenção da doença ocorrem durante todo o mês de janeiro e recebem o nome de Janeiro Roxo. Mas o que tem a ver a Campanha Janeiro Roxo, num blogue que tem por assunto temas ligados à língua e literatura?

A resposta é simples: literatura é forma de conhecimento e, portanto, aprendemos muito com ela sobre qualquer tema, inclusive o preconceito que sofrem os portadores da doença, por isso neste post falo de um conto do escritor português Miguel Torga, pseudônimo do médico Adolfo Correia da Rocha (1907 – 1995), que faz parte do livro Novos contos da montanha (Editora Nova Fronteira). O conto se chama O leproso, publicado pela primeira vez em 1944. Falar desse conto é a forma que encontrei para aderir ao Janeiro Roxo.

Novos contos da montanha

O leproso é narrado em terceira pessoa, ou seja, tomamos conhecimento da história por um observador que vê de fora os acontecimentos. Quando se opta por uma narração em terceira pessoa, os efeitos de sentido produzidos são de objetividade. A história é resumidamente o que conto nos parágrafos que seguem.

Julião, o protagonista do conto, é um trabalhador rural de Loivos, em Trás-os-Montes. Quando Margarida vem servir a refeição aos trabalhadores, Julião toca com as costas das mãos os seios da rapariga, que reage dizendo: “Ó meu leproso dos infernos!” Todos riem, mas algo fica marcado na consciência de Julião: LEPROSO.  Embora já suspeitasse de que tinha a doença, a palavra serve-lhe como uma sentença condenatória. Até então não conhecia a gravidade do mal, que só chega à sua consciência quando do proferimento da palavra.

Os companheiros de Julião, vendo que este se calara após ouvir a palavra, tentam minimizar a situação dizendo que aquilo fora apenas uma gracejo de Margarida. Mas se a palavra chamara Julião à consciência, o mesmo ocorreu com seus companheiros de trabalho que passaram então a agir com sentimento de cautela e resguardo em relação a Julião.

A palavra passa então a correr pela boca de todo o mundo e Julião começa a ser evitado cruelmente por todos, que diziam que o mal de Julião se pegava e que “era a praga mais negra que se podia rogar a alguém“. Julião, mais do que discriminado, passou a ser condenado pelos moradores da aldeia que o achavam uma coisa imunda, repelente e contagiosa. Quando vai pedir algum trabalho, batem-lhe a porta na cara.

Um velho, de nome Januário, foi o único que mostrou alguma humanidade para com Julião e aconselhou-o a procurar um médico, que não lhe deu qualquer esperança, nem remédio, nem hospital.

Uma mudança começa a se operar em Julião. Quanto mais a doença progredia, mais vontade de viver ele sentia. Considerava-se injustiçado pelos moradores da aldeia, que fugiam dele como um “cão danado”. Achava-se vítima de uma fatalidade, já que não tinha culpa por sua doença.

Uma velhota lhe sugere que se banhasse em azeite, pois isso poderia curá-lo. Julião junta todo seu dinheiro compra o azeite e nele se banha. Nenhum resultado. Para recuperar o dinheiro e também para aplacar o ódio que sentia da população que o evitava,  recolhe o azeite usado no banho e o vende para o dono do armazém da aldeia que revende o azeite aos moradores de Loivo, que passam a consumir o azeite até que alguém alerta a população de que Julião se banhara no azeite. A população, que já o desprezava, passa a odiá-lo e o expulsa da aldeia.

Com aspecto repugnante e com um dedo já caído, Julião passa a esmolar. Num mês de agosto, embora se apegasse demais à vida, Julião sentiu que sua hora chegara. Como amava sua aldeia, resolve voltar a Loivo para morrer em sua terra; mas a população, ao vê-lo, quer dar cabo dele.

Julião, vendo o perigo, foge, mas é perseguido por uma multidão ensandecida e armada de enxadas. Refugia-se no mato até que o avistam e, numa atitude animalesca, incendeiam a mata e o pobre aldeão é devorado pelas chamas.

Apesar da palavra maldita, Julião jamais esperava uma morte assim. O que restou dele foi apenas um toco negro, que em nada se distinguia de um tronco de árvore mal queimado.

O conto chama a atenção para as consequências trágicas que resultam da ignorância e do preconceito. Os textos literários são figurativos, isso significa que sob a palavra leproso podemos enxergar diversas outras. Nos dias de hoje, os Juliões não são mais os leprosos, mas pessoas que têm uma vontade incrível de viver, mas que são vítimas de barbáries decorrentes do preconceito e da intolerância.

3 Comentários


  1. Professor Ernani Terra, gostei muito análise desse conto.

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  2. Grande Ernani Terra, como sempre a análise justa, acurada, abalizada, com equilíbrio e leveza mesmo quando o tema é pesado, como acontece nesse conto. Há vários outros, nesse Novos Contos da Montanha, também com temas pesados, refletindo a desumanidade, a miséria, até a crueldade a que a nossa condição e a ignorância podem levar. Professor Ernani Terra, está oficialmente desafiado, por um humilde mas descarado membro da Tietagem Torguiana, a nos presentear com a análise de “O Senhor”, o último desse livro.

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