O texto literário: um texto figurativo

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Os textos podem ser classificados em temáticos ou figurativos. A diferença entre uns e outros está ligada à dominância de temas ou figuras.

Nos textos literários predominam as figuras. Não estou empregando aqui o termo figuras no sentido que usado pelas gramáticas, ou pelos manuais de estilística, as chamadas figuras de estilo ou de retórica (metáfora, metonímia, antítese, hipérbole, etc.). Explico a seguir o que chamo de figuras.

Quando se estudam as classes de palavras, aprende-se que substantivos podem ser concretos, quando designam os seres em si, quer tenham existência no mundo real ou apenas na imaginação (livro, aluno, fada, bruxa, etc.), e abstratos, quando designam estados ações ou qualidades, tomados como seres (tristeza, coragem, esperança, etc.). Chamo a atenção para o fato de que a oposição concreto vs. abstrato não é exclusiva da classe dos substantivos. Há adjetivos concretos como verde, escuro, listrado, loiro e adjetivos abstratos como arrependido, saudoso, preocupado. Há verbos concretos como pular, falar, nadar e verbos abstratos como pensar, raciocinar, esquecer.

As palavras concretas constituem as figuras e têm um referente no mundo natural, sua percepção é de ordem sensorial. As palavras abstratas constituem os temas e nomeiam conceitos, abstrações; não têm, portanto, um referente no mundo natural e, por serem de ordem cognitiva, não são percebidas sensorialmente. As figuras representam o mundo; os temas o organizam. Os textos acadêmicos são predominantemente temáticos; os literários, predominantemente figurativos. As figuras revestem os temas: uma figura como ilha pode estar revestindo temas como solidão, isolamento, refúgio; uma figura como asas, o tema da liberdade. Pode-se usar o verde para significar esperança; o preto, para luto; o vermelho, para paixão; o branco, para paz. Atente, porém, que essa relação é convencional. Na nossa cultura, o preto está associado ao luto; em outras, usa-se o branco.

A distinção entre texto figurativo e temático fica nítida quando se lê uma fábula. Esse gênero narrativo apresenta duas partes: a fábula propriamente dita (a narração); e a moralidade, em que há um preceito, uma regra de conduta. Na narração, predominam as palavras concretas: raposa, uva, parreira, cachos; na moralidade, palavras abstratas.

O conto Uma galinha, de Clarice Lispector, narra a história de uma galinha que ia ser morta para servir de almoço para a família num domingo. Quando ia ser apanhada, foge. Começa uma perseguição para capturá-la; mas, no momento que a pegam, ela bota um ovo. Resultado: a família fica com pena da galinha e decide não matá-la.

Trata-se de um texto figurativo em que se sobressaem figuras como mãe, maternidade, parturiente, dar à luz, cozinha, rainha da casa, o que nos obriga a ler o conto não como a história de uma galinha, na medida em que essas figuras recobrem o tema da mulher, vista como procriadora e dona de casa.

Transcrevo alguns fragmentos de texto para deixar mais clara essa exposição.

Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela. Não vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000003.pdf. Acesso em 14 abr. 2022.

Esse é um trecho do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, em que o narrador descreve a personagem Rita Baiana. Trata-se de texto figurativo, na medida em que nele predominam as palavras concretas, que dão sensorialidade ao texto.

Descrever é fazer o retrato de algo ou de alguém a partir de suas características. Nela, procura-se fazer com que o leitor construa uma imagem mental do que se descreve. Para descrever Rita Baiana, o narrador se vale de figuras que apelam a sensações visuais (traje de domingo, casaquinho branco, saia, chinelo, enfeites, cabelo crespo e reluzente, saracoteando, quadril, etc.) e olfativas (manjericão, baunilha, odor sensual, plantas aromáticas). O uso dessas figuras tem o condão de transmitir ao leitor a imagem de uma mulher sensual e que exerce fascínio nos outros.

As figuras, além de darem concretude aos textos, exprimem também valores ideológicos. É frequente nos jornais e redes sociais um mesmo fato ser chamado de invasão ou ocupação. A escolha de uma figura ou outra revela o posicionamento de quem a empregou. Um jornal que afirma Integrantes do MST invadem fazenda no interior de São Paulo posiciona-se de maneira diferente de outro que afirma Integrantes do MST ocupam fazenda no interior de São Paulo. No primeiro caso, o jornal se posiciona contrariamente ao fato; o que não acontece no segundo. Invadir é usado para designar um ato criminoso, desrespeito à propriedade privada, ocupação ilegítima de algo que não lhe pertence. Ocupar não tem essa carga semântica, pois é usado para designar o ato de apropriar-se de algo abandonado ou improdutivo.

No texto que segue, as figuras revelam a visão machista do homem na sociedade patriarcal moçambicana.

 – Rami, a minha vida era boa. Fazia tudo o que queria. Visitava as mulheres quando me apetecia. Tirava o dinheiro do meu bolso, pagava-as quando mereciam. Agora que têm esses vossos negócios julgam-se senhoras mas não passam de rameiras. Julgam que têm espaço, mas não passam de um buraco. Julgam que têm direito e voz, mas não passam de patos mudos.

– Estamos a ganhar dinheiro para melhorar a vida, Tony.

– Por isso me afrontam, porque têm dinheiro. Por isso me abusam, porque têm negócios. Por isso me faltam ao respeito, porque se sentem senhoras. Mas eu sou um galo, tenho cabeça no alto, eu canto, eu tenho dotes para grandes cantos. Pois saibam que o vosso destino é cacarejar; desovar, chocar, olhar para a terra e esgaravatar para ganhar uma minhoca e farelo de grão. Por mais poder que venham a ter, não passarão de uma raça cacarejante mendigando eternamente o abraço supremo de um galo como eu, para se afirmarem na vida. Vocês são morcegos na noite piando tristezas, e as vossas vozes eternos gemidos.

CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 166-167.

Observem as figuras relativas ao homem:  galo, cabeça no alto, eu canto, tenho grandes cantos. Compare com algumas usadas em referência à mulher: rameiras, patos mudos, cacarejar, raça cacarejante, morcegos.

A figurativização não é exclusividade de textos literários. Na produção dos mais diversos tipos de texto, até mesmo nos temáticos, quem escreve costuma recorrer a figuras, portanto se valha delas sempre que quiser dar um caráter concreto a uma ideia de seu texto.


Este texto, originalmente, consta de nosso livro Da produção literária à produção de textos, publicado pela Editora Contexto.Mais informações clique aqui.

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