Ortografia 2

Tempo de leitura: 8 minutos

Numa passagem do romance Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles, há a seguinte fala da personagem Virgínia, quando ainda pequena: “A gente fala familha mas escreve família. Havia ainda uma porção de palavras assim.” A personagem, ainda criança, constata o que todos sabemos: que não escrevemos como falamos ou, em outros termos, a escrita não reproduz exatamente a fala.

Fala e escrita

Fala e escrita são sistemas distintos, cada qual com características próprias. A escrita é uma forma de fixação da fala que permite visualizá-la e preservá-la. Os antigos diziam verba volant, scripta manent, ou seja, as palavras voam, aquilo que está escrito permanece.

As línguas são primeiramente faladas. A escrita é sempre uma etapa posterior. Aprendemos primeiro a falar e mais tarde a escrever. A aquisição da fala é natural; se dá pelo contato com os demais falantes. A aquisição da escrita é sempre uma etapa posterior e costuma ser aprendida na escola. Há pessoas que dominam a fala mas não dominam a escrita (os analfabetos). Há povos que não têm sistema de escrita (povos ágrafos). A recepção da língua falada se dá pela audição; ouvimos sons, os fonemas, unidades mínimas de caráter distintivo. A recepção da língua escrita se dá visão; vemos sinais gráficos, os grafemas. Lembremos ainda que a recepção da escrita, ao contrário da fala, exceto quando se ouve uma gravação, se dá sempre em momento posterior à sua produção.

A língua escrita, ao contrário da língua falada, é marcada pela estabilização, ou seja, há um único sistema ortográfico para representar pronúncias diferentes. Não importa qual seja a pronúncia (menino, meninu, mininu), a grafia será sempre a mesma: menino.

Muitas dúvidas de grafia decorrem principalmente do fato de que não há uma correspondência perfeita entre os sons da fala, os fonemas, e os símbolos gráficos que os representam e que permitem visualizá-los, os grafemas. Além disso, embora se reja por alguns princípios, o sistema ortográfico é uma convenção.

Para as escritas alfabéticas, o sistema ortográfico ideal seria aquele em que cada símbolo gráfico representasse um único fonema e que cada fonema fosse representado por uma única letra. Não há sistema de escrita alfabética em que isso ocorra.

Dúvidas ortográficas

Todos temos dúvidas sobre grafia de palavras. Embora gramáticas e livros didáticos costumem trazer orientações ortográficas, elas são bastante insuficientes para resolver as dúvidas que temos sobre ortografia, já que se limitam a dar orientações gerais sobre emprego de letras que representam fonemas diferentes ou de mesmos fonemas representados por letras diferentes. São os casos clássicos de emprego de s, z, j, g, x, ch.

As dúvidas referentes à ortografia costumam ir muito além disso. Na prática, basta se deparar com uma palavra que não conhecemos ou que poucas vezes vimos grafada para ficar vacilante quanto à grafia correta.  Nesse caso, o caminho é recorrer a um bom dicionário ou ao Volp.

A ortografia na aula de português

Se na escrita alfabética, usamos as letras (e outros sinais gráficos) para representar os fonemas, não tem qualquer sentido separar, na escola, o ensino da fonologia da ortografia.

Tenho observado que se tem tratado o ensino da ortografia como um assunto independente da fonologia e mais: tem-se restringido o ensino da ortografia ao emprego de algumas letras e dígrafos que representam um mesmo fonema: jeito / gente;  asa / azia , xícara / chave, etc. Os desvios ortográficos, no entanto, vão muito além do emprego de letras diferentes que representam um mesmo som ou de sons diferentes representados por uma mesma letra. São comuníssimos os desvios ortográficos por supressão de letras, por acréscimos de letras, por trocas de letras que não sejam s e z, x e chj e g, o e u, e e i.

Acréscimo, supressão, troca de letras decorrem de fenômenos fonéticos bastante conhecidos e estudados. Refiro-me especialmente aos metaplasmos. Esses fenômenos fonéticos são normalmente estudados em gramática histórica.

Etimologicamente, a palavra metaplasmo é formada de dois elementos gregos: meta-, que significa mudança, alteração, e plasma-, que significa coisa modelada, modelação. Esse elemento grego é o mesmo que aparece em plástico, plasticidade. Trocando em miúdos, metaplasmos são mudanças (meta) nas palavras, modelando-as numa nova forma. As palavras são plásticas na medida em que assumem novas formas. É importante saber que essas mudanças na forma não implicam mudanças de sentido: as formas aluguel e aluguer, flecha ou frecha têm exatamente o mesmo sentido.

Essas mudanças da forma, os metaplasmos, não se dão aleatoriamente. Eles decorrem de usos generalizados. Não são muitos os metaplasmos, felizmente, de sorte que o conhecimento deles pode ajudar muito no ensino / aprendizagem de ortografia na escola. Evidentemente, esse ensino será prático, ou seja, o professor não deve se valer de metalinguagem específica. Ao contrário, deve mostrar as transformações sem se importar que nome elas recebem. A seguir, comento alguns desvios ortográficos bastante comuns.

Desvios por acréscimos

Os acréscimos de fonemas não etimológicos (e em consequência de letras para representá-los) podem ocorrer no início, no fim, ou no meio do vocábulo. Vejamos exemplos de desvios ortográficos por acréscimo de letras.

Acréscimo da semivogal /j/ não etimológica: grafar treis em vez de três; rapaiz em vez de rapaz; Jesuis em vez de Jesus; carangueijeira em vez de caranguejeira; Satanais em vez de Satanás; arroiz em vez de arroz.

Acréscimo de fonema vocálico /e/ ou /i/ não etimológico, representados na escrita pela letras E e I, quebrando grupo consonantal para facilitar a pronúncia:  adevogado ou adivogado em vez de advogado; peneu ou pineu em vez de pneu; recepição em vez de recepção; ritimo em vez de ritmo; afita em vez de afta; pisicologia em vem de psicologia.

Desvios por supressão

As supressões de fonemas e sua consequente representação por letras podem se dar no início, no meio, ou no final do vocábulo. Vejamos alguns exemplos bastante comuns.

Redução de dois fonemas de um ditongo a um único fonema. Esse fenômeno fonético é chamado de monotongação. Nesse caso, suprime-se a semivogal. É o que ocorre em:  caxa em vez de caixa; pedrero em vez de pedreiro; bestera em vez de besteira; cansera em vez de canseira; otro em vez de outro.

Um caso interessante de monotongação ocorre com o encontro ie em final de palavra em que a semivogal é apagada: calvice, planice, espece, superfice, imundice. Nesse caso, a vogal soa como átona e/i.

Quando a supressão se dá no meio da palavra, temos síncope: própio em vez de próprio; propietário em vez de proprietário.  Se ela se der no final da palavra, temos apócope: estô em vez de estou; chegô em vez de chegou.

Supressão de sílaba da palavra: xicra em vez de xícara; abobra em vez de abóbora; cubico em vez de cubículo; chacra em vez de chácara. Conheci uma pessoa que falava que estava de cocas, querendo dizer que estava de cócoras. O fato de pronunciar cocas em vez de cócoras fazia com que escrevesse cocas em vez de cócoras.

Apagamento do R final: vivê em vez de viver; comprá em vez de comprar; fazê em vez de fazer (apócope).

Apagamento da nasal final: viage em vez de viagem; vertige em vez de vertigem; Milto em vez de Mílton; Nelso em vez de Nélson, bença em vez de bênção; home em vez de homem (apócope com desnalização desnasalização).

Apagamento da vogal inicial: brigado em vez de obrigado; magina em vez de imagina. Há também o apagamento de sílaba inicial: fessor em vez de professor; tava no lugar de estava (aférese).

Um caso comum é o apagamento do fonema linguodental sonoro /d/ nas formas do gerúndio: cantano, falano, cantano, estudano (assimilação)

Lembro ainda que há desvios ortográficos decorrentes da troca de letras e esses casos não se reduzem no uso de j no lugar de g; de x no lugar de ch; de s no lugar de z. Cito alguns.

Troca do R por L: maLmita em vez de marmita.

Troca L por R: pRaca em vez de placa;  repúbRica em vez de república (rotacismo).

Troca do L, em geral em final de sílaba, pelo U que representa a semivogal /w/: maUdade em vez de maldade; paUmito em vez de palmito; saUvar em vez de salvar.

Troca do dígrafo LH em I: paia em vez de palha; óia em vez de olha; fia em vez de filha (deslaterização).

Ocorre também o inverso, a palatização: Antonho em vez de Antônio; familha em vez de família; sandalha em vez de sandália.

Referências

TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 30.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.