Ortografia é gramática?

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O post de hoje tem por motivação uma pergunta que me foi enviada por um seguidor. Como a pergunta pode ser de interesse de muita gente, resolvi respondê-la também por meio do blogue. Perguntava o seguidor se ortografia é uma parte da gramática. Vamos às considerações, mas antes discorremos em poucas palavras os dois conceitos que entram na pergunta.

A ortografia, como se depreende dos elementos gregos que formam a palavra, orthós e gráphein, trata da escrita correta das palavras. O que se deve prestar a atenção é no elemento grafia-. Isso deixa claro que ortografia diz respeito apenas e tão somente à língua escrita.

A língua, como se sabe, pode se manifestar na modalidade falada ou escrita, esta com ocorrência muito menor do que aquela. Portanto ortografia não diz respeito à língua como um todo, mas apenas a manifestações escritas da língua. Isso é tão nítido que, quando fazemos uso da língua falada, nem nos passam pela cabeça questões ortográficas. Quando falamos “ele agiu mal” e “o Supremo se reuniu em sessão plenária”, nem nos preocupamos em saber se mal é com L ou com U e se sessão é com SS ou com “Ç. Na língua falada, podemos ter preocupações quanto à pronúncia correta das palavras, por exemplo, podemos ficar em dúvida se devemos dizer gratUIto ou gratuÍto. Mas isso é questão de prosódia e não de ortografia.

Quanto ao conceito de gramática, ao contrário do que ocorre com o de ortografia, as coisas não são tão simples; pois, sob o nome gramática, temos coisas distintas. Num sentido mais amplo, chamamos gramática ao conjunto de regras de uma dada língua que permite combinar as palavras para formar frases portadoras de sentido. Todas as variedades da língua têm suas regras. A variedade popular também obedece a regras, que nem sempre coincidem com as da variedade culta. Quando, na variedade popular, se diz “Os menino saiu”, obedeceu-se a uma regra: marcar o plural apenas no primeiro elemento. Isso tem a ver com a gramática.

Uma língua é um conjunto de palavras, o léxico, e um conjunto de regras, a gramática. Esta última é de conhecimento de todos os falantes, independentemente de escolarização formal. Ninguém precisa ir à escola para saber que o artigo deve anteceder o substantivo. Você nunca encontrará um falante dizendo Menino o ou Professora a, pois essa regra foi internalizada desde tenra idade. Em outras palavras, podemos definir gramática como o estudo dos fatos da linguagem e das leis naturais que a regulam. Chamamos a atenção para o adjetivo “naturais” presente na definição apresentada. A rigor, a gramática se divide em fonologia, morfologia e sintaxe. Dessa forma, a ortografia não faz parte da gramática. O sistema ortográfico é uma mera convenção, não tem nada de natural.

Ocorre que a palavra gramática é usada para nomear um conjunto de regras que prescrevem um determinado uso da língua, denominado norma-padrão. É necessário agora abrir um parêntese para deixar claro que o que chamamos de norma culta não deve ser confundido com a chamada norma-padrão. A primeira representa usos efetivos de falantes que têm acesso à cultura letrada, é essencialmente urbana e prestigiada socialmente. A segunda não tem existência empírica, ou seja, não representa o uso de uma comunidade de falantes. Não se trata, pois, de uma variedade linguística. É um modelo de língua considerado ideal e veiculado por meio das gramáticas normativas tradicionais, por muitos manuais e programas na mídia que se propõem a ensinar a escrever “certo”. Evidentemente, há gramáticas que mostram que não há uma única forma de se dizer algo e ilustram muitos usos efetivos de linguagem culta que não correspondem ao que estabelece a denominada norma-padrão.

Embora a ortografia não seja parte da gramática, as gramáticas prescritivas, entre elas as gramáticas escolares, costumam trazer um ou mais de um capítulo com orientações ortográficas e também regras de acentuação gráfica, quando tratam de fonologia. O escopo dessas gramáticas não é tratar das leis naturais que regulam os fatos da linguagem, mas apresentar regras que devem seguidas no uso da língua, em especial na modalidade escrita.

Para finalizar, ortografia não deve ser entendida com uma parte da gramática, embora esse assunto seja tratado em gramáticas, em especial as escolares. Veja que essas gramáticas também trazem assuntos como pontuação, estilística (figuras de linguagem) e semântica (sinônimos, antônimos, homônimos e parônimos), que não pertencem à gramática.

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