Ortografia

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A ortografia diz respeito à escrita das palavras, portanto é algo relativo à língua escrita e não à língua falada. Atentando para os elementos que formam essa palavra, isso fica bem claro. O radical grego orto– significa ‘certo’, ‘correto’ e o radical grego –grafia significa ‘escrever’. Assim, ortografia quer dizer escrever certo, escrever correto.

Quando alguém pergunta “qual é a ortografia correta dessa palavra?“, está cometendo um pleonasmo, porque ortografia só pode ser correta. Mas esse é um daqueles pleonasmos que os falantes usam sem darem conta de que estão se valendo de uma construção pleonástica, porque perderam a noção de que, em ortografia, já há um radical (orto) que significa correto. Esse não é o único caso, evidentemente, o mesmo ocorre em bela caligrafia (caligrafia só pode ser bela, porque o radical cali– significa bonito);  em jornal diário (na palavra jornal já está contida a ideia de dia) e outras. Mas o assunto é outro: ortografia. Então passemos a definição que segue.

Ortografia trata da uniformização da escrita das palavras. Envolve o emprego das letras e outros sinais, como os acentos gráficos, o til, a cedilha, o apóstrofo, o hífen e os sinais de pontuação.

A ortografia é uma convenção. Existe um sistema ortográfico vigente que as pessoas devem seguir para que o português seja escrito da mesma maneira, independentemente da pronúncia dos falantes, ou seja, no português há variações na pronúncia das palavras, mas se exige que, quando se escreve, todos usem a mesma grafia. Como a ortografia é convencional e como nem todos conhecem todas as palavras da língua, sempre haverá dúvidas em relação à grafia. Quando isso ocorre, o melhor caminho é a consulta a um bom dicionário ou ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), disponível no site da Academia Brasileira de Letras. 

Um sistema ortográfico ideal seria aquele em que cada letra representasse um único fonema e que cada fonema fosse representado por uma única letra. Não é isso que ocorre na prática, pois uma palavra pode ter mais letras que fonemas, como naquelas em que ocorrem dígrafos, ou uma letra pode representar mais de um fonema. Em síntese: em português, nem tudo que aparece escrito é pronunciado (palavras com h inicial, por exemplo); por outro lado, nem tudo que é pronunciado aparece escrito (pronuncia-se pineu, mas deve-se escrever pneu).

Os sistemas ortográficos nas línguas alfabéticas costumam ser de base fonética ou de base etimológica. No primeiro caso, procura-se escrever a palavra da forma como ela é pronunciada; no segundo, leva-se em conta a origem da palavra. O sistema ortográfico brasileiro é de base fonética, no entanto muitas palavras são grafadas segundo sua etimologia, por exemplo, escrevemos hoje (com h inicial) embora pronunciemos oje, respeitando a etimologia da palavra (do latim: hodie). Escrevemos nascer e descer, respeitando a etimologia. Essas palavras provêm do latim, nascere e descere, respectivamente. A razão para algumas palavras apresentarem o dígrafo sc no interior do vocábulo é puramente etimológica (adolescentia: adolescência; onisciente: oni- + lat. sciente), porém nas palavras em que o grupo sc aparece no início da palavra latina, ele foi substituído por c (scena: cena; scientia: ciência).

A ortografia da língua portuguesa sofreu, através dos séculos, uma série de modificações, que ora a afastavam, ora a aproximavam do padrão ideal em que cada letra representa o mesmo fonema e cada fonema correspondesse a uma única letra. Adiante, apresento um breve histórico da ortografia do português.

Ortografia e fonologia

Para compreender bem como funciona a ortografia em português, é fundamental ter bem claros alguns conceitos de fonologia, pois as letras são utilizadas para representar os fonemas da língua.

Na língua escrita, os fonemas são representantes por sinais gráficos denominados letras. É importante não confundir letra com fonema. O fonema é uma realização acústica, isto é, uma unidade de caráter sonoro, enquanto a letra é simplesmente a representação gráfica do fonema. Por isso, nem sempre haverá nas palavras exata correspondência entre o número de letras e o número de fonemas, o que pode gerar dúvidas a respeito da grafia de palavras. Podem ocorrer as seguintes situações:

a) um mesmo fonema sendo representado por letras diferentes, é o que ocorre, por exemplo, em palavras como bucho e bruxo; casa e cozinha; gelo e jeito.

b) uma mesma letra representando diferentes fonemas; é o que ocorre, por exemplo, com o x: lixo (som de ch); ximo (som de ss); exemplo (som de z em zebra); fixo (som de ks).

c) duas letras representando um único fonema; é o que ocorre, por exemplo, em campo, carro, chave, exceção, ligue, lindo, nascer, ssaro, queijo, quilo, rainha, hoje.

Além das letras, para grafar as palavras utilizamos as notações léxicas: o acento agudo ( ´ ), o acento grave ( ` ), o acento circunflexo ( ^ ), o hífen ou traço de união ( – ) , o til ( ~ ), a cedilha ( , ) e o apóstrofo ( ’ ).

O Acordo Ortográfico de 1990 aboliu o uso do trema ( ¨ ) na letra u átona dos grupos gue, gui, que, qui. Assim, palavras como aguentar, sagui, frequente e tranquilo não recebem trema. O uso dessa notação léxica restringe-se apenas à grafia de nomes estrangeiros (e seus derivados) que na língua de origem venham marcados com esse sinal. É o caso de Müller e mülleriano.

Como grafar corretamente as palavras em português?

Como assinalei, em português, muitas palavras não são grafadas como são pronunciadas, o que costuma deixar as pessoas em dúvida ou levá-las a cometer erros na escrita.

Por outro lado, há variação na pronúncia de muitas palavras em decorrência de inúmeros fatores. Não importa se você pronuncie teia ou telha; denti ou dente; faz ou faiz, na hora de grafar deve fazê-lo segundo o sistema ortográfico vigente que nos obriga a escrever telha, dente e faz, porque o sistema ortográfico é único. Imagine a confusão que iria dar se cada falante resolvesse escrever as palavras da forma que a pronuncia. Teríamos tantas grafias diferentes que chegaria uma hora em que haveria dificuldades de entender o que outra pessoa escreveu.

Um sistema ortográfico serve justamente para isso: para unificar a grafia, para fazer com que todas as pessoas escrevam as palavras da mesma maneira, independentemente da forma que a pronunciam.

Observação: nem todo desvio ortográfico deve ser considerado um erro. Em muitos casos, o desvio é intencional para chamar a atenção do leitor. Em muitos casos, esse desvio tem sentido irônico. Um jornalista costumava escrever çábio para chamar a atenção do leitor para o fato de que a pessoa a quem se referia se caracterizar por cometer erros primários. Outro jornalista, ao se referir a essa mesma pessoa, escrevia jênio, ironizando a pouca inteligência daquele a quem se referia.

O sistema ortográfico em vigor no Brasil é o do Acordo da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. O novo Acordo Ortográfico, no entanto, só passou a vigorar em 2009.

Histórico da ortografia do português

Costuma-se dividir a ortografia da língua portuguesa em três períodos: fonético, pseudoetimológico e das reformas ortográficas.  Vejamos cada um deles.

Período fonético

Corresponde à época do português arcaico (século XII, XIII, XIV e XV), período em que o idioma sofre as mais profundas transformações, o que se reflete nas tentativas de estabelecer uma escrita própria (até o século XIII, além dos documentos oficiais, escritos em latim, pouco se escrevia). Nesse período, a língua portuguesa passa por uma rápida evolução fonética, e os registros adotam ora padrões antigos, ora novas soluções, o que evidentemente variava de acordo com cada região. Isso explica a falta de unidade ortográfica do português arcaico.

Para exemplificar a ortografia do período fonético da língua portuguesa, transcrevemos uma cantiga trovadoresca de D. Dinis, sexto rei de Portugal (1261-1325) e o seu mais fecundo trovador.

Un tal ome sei eu, ai, ben talhada,

que por vós ten a sa morte chegada;

vedes quen é e seed’ nembrada:

            eu, mia dona!

Un tal ome sei eu, que preto sente

de si morte chegada certamente;

vedes quen é e venha-vos en mente:

            eu, mia dona!

Un tal ome sei eu – aquest’ oíde–

que por vós morre, vó-lo en partide;

vedes quen é e non xe vos obride:

            eu, mia dona!

LAPA, M. Rodrigues. Lições de literatura portuguesa: época medieval. 8. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1973.

  • Un tal ome: um certo homem.
  • ben talhada: bem-feita, bem-torneada; formosa.
  • que por vós ten a sa morte chegada: que morre por vós.
  • Seed’ nembrada: lembrai-vos; não vos esqueçais.
  • mia dona: minha dona; minha senhora.
  • preto: perto.
  • venha-vos em mente: tende em mente; lembrai-vos.
  • aquest’ oide: ouvi isso, escutai isto (chamando a atenção da mulher).
  • vó-lo em partide: vós o deixastes partir, afastar-se.
  • non xe vos obride: não vos esqueçais dele.
Período pseudoetimológico

Iniciado no Renascimento, prolonga-se até o início do século XX. Caracteriza-se pela tentativa de separar a escrita da pronúncia e fazê-la retroceder até a sua origem (o grego e o latim).

Nesse período, é comum encontrar palavras grafadas com ch (com som de /k/), ph, rh, th, y, por exemplo:

eschola (escola, do grego scholé, através do latim schola); pharmacia (farmácia do grego pharmakéia, pelo latim pharmacia)

rhetorico (retórico, do grego rhetórikos, pelo latim rhetoricu)

theatro (teatro, do grego theátron, pelo latim theatru)

estylo (estilo, do grego stylós, pelo latim stilu)

Somno (do latim somnu), bocca (do latim bucca), ella (do latim illa), matto (do latim tardio matta), pae (do latim pater, pelas formas padre, pade e pae), appelido (derivado da forma verbal appellitare) são outros exemplos de grafias do período etimológico. Observe que a forma pae contraria a pronúncia, já que nesse ditongo o e representa uma semivogal /y/. Com o sistema misto, a partir da década de 1930, prevaleceu a forma pai).

Período das reformas ortográficas

Começa em 1916 e se prolonga até os dias de hoje. Nesse período, a ortografia sofreu uma série de modificações que, de etimológica, transformaram-na em preferencialmente fonética, sem que isso tenha significado a adoção de um sistema de representação único e inconfundível para cada som.

Em 1911, com o objetivo de simplificar a complicadíssima ortografia da época, o governo português nomeou uma comissão de filólogos (entre os quais de destacava Gonçalves Viana), a fim de estabelecer as bases da Nova Ortografia, implantada em 1916 e modificada em 1927. A ortografia de 1911 não foi extensiva ao Brasil.

Antes disso, em 1907, a Academia Brasileira de Letras havia tratado de efetuar uma reforma ortográfica. Entretanto, o sistema por ela proposto encontrou críticos dentro da própria Academia, de modo que acabou por ser esquecido. Somente em 1930, a reforma ortográfica voltou a ser discutida no Brasil.

Por fim, em 15 de junho de 1931 foi assinado o primeiro acordo ortográfico entre o Brasil e Portugal, que, no entanto, não chegou a produzir a tão almejada unificação dos dois sistemas. Em 1940, aparece em Lisboa o Vocabulário ortográfico organizado por Rebelo Gonçalves; em 1943, publica-se no Brasil o Pequeno vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras. Ambos, diferem em pequenos detalhes, sobretudo na acentuação de vocábulos. O sistema ortográfico de 1943 foi simplificado pela Lei n. 5.765, de 18 de dezembro de 1971, que restringiu o emprego do acento circunflexo diferencial e o uso do trema e aboliu o acento gráfico que assinalava a sílaba subtônica. Essa simplificação ortográfica só foi adotada em Portugal em 1973.

O sistema ortográfico em vigor

O sistema ortográfico adotado atualmente no Brasil é o do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990 por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.

Como o próprio nome indica, o Acordo Ortográfico visa à unificação do sistema ortográfico dos países de língua portuguesa, ou seja, pretende-se, como ocorre no inglês, que se tenha uma ortografia única para todos os países de língua portuguesa. Evidentemente, continuarão a existir diferenças em termos de pronúncia, sintaxe e vocabulário.

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4 Comentários


  1. Gosto muito do seu Blogue, pois realmente, apesar do acordo ortográfico, que tem bastantes críticos – pois segundo se diz, até quem o assinou, escreve de forma diferente – de qualquer modo tudo quanto seja relativo à língua portuguesa, tem o condão de me interessar e muito…
    Ou seja, devo dizer que eu o utilizo, embora não concorde com ele, pois por exemplo, se as escolas o usam, julgo que deva ser o paradigma; simplesmente há enormes diferenças entre a escrita e/ou a pronúncia no Brasil e o correspondente em Portugal, pelo que, acaba por ser bastante controverso!
    Alguns exemplos, para além de palavras aqui referidas:
    Pineu – não é a pronúncia em Portugal, mas pneu!
    Onisciente – não é utilizado por nós, mas como todas as palavras derivadas de omnis-tudo em latim, escreve-se com omni
    Fato – significa normalmente a veste do homem – embora também da mulher – composto de calças e casaco, em que este também se usa designar de blaser! No caso da mulher- pelo menos antigamente – correspondia a saia e casaco!
    Facto – acontecimento, em Portugal.
    Ténica – forma deturpada que por vezes se usa, por confusão da eliminação das consoantes não pronunciadas, que no caso não acontece – isto como em outras palavras – deve ser grafada técnica, pois é assim que se pronuncia!

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    1. sim, há diferenças grandes entre a variedade brasileira do português brasileiro e o europeu. Diferenças essas que aparecem no nível fonológico, semântico, sintático e, inclusive, morfológico, perceptível nos processos de derivação em que envolvem, por ex., sufixos diminutivos. O Acordo é uma pálida tentativa de se tentar unificar os sistemas os sistemas ortográficos, portanto diz muito pouco à língua. Em tempo: as tentativas de unificação dos sistemas é uma guerra de 100 anos. Aliás, este ano chegamos no ano 105 dessa guerra sem fim.

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      1. Olá,
        Muito obrigado… eu não sou nenhum erudito, nem acerca das questões/matéria relacionada com a Língua e o Acordo Ortográfico, mas penso que as diferenças são tantas que dificilmente se torna sintetizá-las, em especial, no que há origem das mesmas se pode referir:
        Diria que basicamente, há toda uma questão de cultura, diferente, usos e costumes, etc., e até quiçá, modas!!!
        Agora está muito na moda por exemplo referirmo-nos a “todos e todas, ou ” portugueses e portuguesas”, que eu acho horrível, e que até mereceu um comentário num jornal, no dia da mulher, relacionado com o assunto!
        Há exemplos – muitos como já referimos – de diferenças, mas um muito corrente, como na interrogação em Portugal, se usar o Advérbio de interrogação “porque”(?) mas no Brasil ser “por que” … ou a expressão coloquial “né”(?), contração (antes contracção) de “não é”, que presumo ser tipicamente brasileiro, pois só o ouvi uma vez ou duas!

        Ainda o “CONTATO” que sugerem para o comentário!
        (presumo que pronunciem como escrevem, tal como nós
        pronunciamos como escrevemos – neste caso, |ct|)
        Ou seja, a regra, é escrever-se com se pronuncia!

        contacto | n. m.
        con·tac·to |ct|
        (latim contactus, -us)
        nome masculino
        1. Estado dos corpos que tocam uns nos outros. = CONTIGUIDADE

        2. Relação de comunicação ou de proximidade. = CONVÍVIO

        3. [Figurado] Proximidade, influência.

        4. Informação que permite estabelecer comunicação com alguém (ex.: não se esqueça de deixar um contacto telefónico).

        • Grafia no Brasil: contato.

        “CONTATO”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/CONTATO [consultado em 14-03-2021].
        Obs.: Gostaria ainda de enviar um artigo, recentemente publicado no jornal “Público” relacionado com a matéria
        mas não sei para onde o dirigir, ou se pode ser aqui!?
        Obrigado pela atenção!

        Responder

        1. Olá Antonio, são inúmeras as diferenças entre o português europeu e o brasileiro e elas se revelam em todos os níveis desde a pronúncia até o vocabulário. Mesmo a ortografia, apesar do acordo, não foi completamente unificada e dificilmente será. Para você mandar o artigo para mim, há duas opções: se for um link, pode colar aqui nos comentários. Se for um texto longo, mande por email para ernani@ernaniterra.com.br
          Abraços.

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