Os textos dialogam

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Um texto, literário ou não, figurativo ou temático, mantém uma relação com outros textos que o antecederam e poderá servir de referência para textos que ainda serão produzidos. Embora o texto se caracterize por ser uma unidade de sentido autônoma, ele se insere numa corrente de outros textos com os quais dialoga, explícita ou implicitamente. Diálogo não significa necessariamente concordância. Assim, um texto pode estar se referindo a outro também para estabelecer polêmica com ele.

O trecho a seguir é o início de um texto do jornalista Juca Kfoury e foi publicado no jornal Folha de S. Paulo.

Não chore, Marin!

Quem chora somos nós. Chora a nossa pátria, mãe gentil.

Choram Marias e Clarices no solo do Brasil.

E choramos pela miséria a que está reduzido o nosso futebol, sob esta CBF dirigida tal e qual fosse pela dona de um bordel.

O texto de Kfouri faz referência expressa à letra da canção O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, da qual reproduz literalmente dois versos: “Chora a nossa pátria, mãe gentil / Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”. A figura “dona do bordel” também remete à letra de O bêbado e a equilibrista.

No mesmo jornal, o cronista Antonio Prata, num texto denominado Poesia, atualizações, “atualiza” sete conhecidos poemas de nossa literatura. Leia, a seguir, um trecho de um deles.

João dava like em Teresa que dava super-like em Raimundo
que jogava charme em Maria que dava match com Joaquim que hackeava os nudes da Lili
que não dava like em ninguém.

O texto de Antonio Prata dialoga com o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, que parodia. O texto de Drummond começa assim: “João amava Teresa que amava Raimundo”.

Dá-se o nome de intertextualidade à referência que um texto faz a outro. Para Fiorin (2011, p. 30), intertextualidade é entendida como “o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”. Em outra obra (Terra, 2014), destaco que o termo intertextualidade foi cunhado por Julia Kristeva, no final da década de 1960, num ensaio sobre a teoria poética de Bakhtin. Para essa autora, “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto“. Pode ser explícita quando há citação literal de texto alheio, como no caso do texto de Juca Kfouri que reproduz literalmente verso da letra da canção O bêbado e a equilibrista. Embora Kfoury não faça isso, as citações textuais de outrem devem vir assinaladas por alguma marca gráfica, como as aspas ou o recuo no parágrafo.

Em trabalhos acadêmicos, como TCC, artigos, teses e dissertações, costuma-se usar as aspas (ou outro destaque gráfico, como o itálico) para citações de até três linhas e o recuo em relação à margem esquerda do texto para citações com mais de três linhas, lembrando que as citações textuais devem ser devidamente creditadas, indicando o autor e as referências completas da obra em que foi colhida a citação.

As regras para citação em textos acadêmicos costumam sofrer alguma variação de instituição para instituição, por isso é sempre bom estar atento às normas de publicação da instituição ou revista em que pretende publicar o texto. As instituições costumam seguir as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que podem ser encontradas em www.abnt.org.br.

Advirto que a utilização de obra alheia, no todo ou em partes, sem que sejam dados os devidos créditos constitui plágio. Além de ser um procedimento antiético, é considerado crime, por violar o direito de propriedade intelectual, estando, portanto, sujeito a sanções legais.

Na intertextualidade implícita, não há referência literal a outro texto, por isso ela não será graficamente assinalada, tampouco haverá a indicação de autoria. Nesse caso, a identificação do texto fonte, também chamado de intertexto, se dá pelo conhecimento de mundo do leitor. O trecho de Antonio Prata é um exemplo de intertextualidade implícita, uma vez que a referência ao poema de Drummond não é direta, o que significa que o leitor só identificará o texto fonte se ele fizer parte de sua memória. No capítulo 4, esse assunto será retomado e aprofundado.

Leia a seguir um trecho do romance O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos.

Percorrendo a Rua Matacavalos, pensei, com saudade, naqueles cavalheiros que andavam de tílburi, jogavam voltarete e tinham sobre o mundo pensamentos sutis. Divisei, a um canto, o vulto amável de Sofia e tive dó do Rubião. A meus ouvidos, Mana Rita fazia insinuações (Cale a boca, mana Rita…). Em certo bonde, que me pareceu puxado por burricos, tive a meu lado Dom Casmurro, e lobriguei, numa travessa, dois vultos que deslizavam furtivos à luz escassa dos lampiões: Capitu e Escobar.

Nesse trecho, há várias figuras que nos remetem ao mundo das obras de Machado de Assis: Rua Matacavalos, Sofia, Rubião, Dom Casmurro, Capitu, Escobar. Evidentemente, o leitor só perceberá a referência ao mundo de Machado de Assis se conhecer a obra desse escritor. Como afirmei, na construção de sentido, não só se mobiliza a competência linguística, mobiliza-se também a competência enciclopédica, isto é, os conhecimentos de mundo armazenados na memória.

Observe que esse diálogo com o mundo da ficção machadiana produz um efeito de sentido de volta ao passado, que é reforçado por figuras como tílburi, voltarete, bonde (puxado por burricos), lampiões. O narrador-personagem, um mineiro em visita ao Rio, não vê a Cidade Maravilhosa como ela é no momento em que narra, mas vê um Rio de Janeiro que tinha guardado na memória desde que lera na adolescência os romances de Machado de Assis. O uso da intertextualidade implícita permite contrapor dois mundos: um presente real e um passado que existe apenas na imaginação. 

A intertextualidade pode também ocorrer em outras semióticas. No filme Os intocáveis (1987), de Brian De Palma, a cena em que um carrinho de bebê desce desgovernado por uma escada é uma alusão explícita a uma cena idêntica que aparece no filme O encouraçado Potemkin (1925), do diretor russo Sergei Eisenstein.

A imagem a seguir, cuja função é de fazer propaganda de uma marca de amaciante de roupas, dialoga com o conhecido quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.

Quando um texto remete a outro com a intenção deliberada de subvertê-lo como na propaganda da marca do anunciante, temos paródia. Nela, uma figura do plano da expressão (a posição e a caracterização do modelo) possibilita a identificação do texto fonte, o quadro de Leonardo da Vinci.

Todo texto guarda relações explícitas ou implícitas com outros que o precederam e que fazem parte do conhecimento enciclopédico, portanto a intertextualidade estará presente em textos expositivos, narrativos, argumentativos etc. sejam os mais simples ou os mais complexos. Uma dissertação ou uma tese de doutorado se caracterizam por ser um mosaico de citações (a maioria diretas) que se usam para corroborar o ponto de vista daquele que escreve. Nesse caso, as citações alheias constituem o que se chama de argumento de autoridade.

Os artigos de opinião e os editoriais que se leem na imprensa sempre fazem referência a algo que foi dito por outrem, seja para concordar e aderir ao pensamento do outro, seja para dele discordar, apresentando outro ponto de vista, ou para relativizá-lo. Num julgamento, tanto defesa quanto acusação recorrem a textos de outrem para justificar a tese que defendem e persuadir quem julga a aceitá-la.

Até na conversação, num bate-papo informal, nossas falas são construídas a partir de outras. Nas redes sociais, as pessoas sempre se referem a algo que foi postado, seja para manifestar concordância ou discordância. Enfim, não há texto inédito uma vez que todo dizer está apoiado num já-dito. A respeito disso, vale a lembrar as palavras do historiador francês Michel de Certeau quando afirma que “malgrado a ficção da página em branco, sempre escrevemos sobre algo escrito”.

As relações intertextuais explícitas são fáceis de perceber porque vêm marcadas no texto, mas a compreensão de um texto exige também que o leitor perceba as relações intertextuais implícitas. A compreensão dos textos de Juca Kfouri, Antonio Prata e Cyro dos Anjos pressupõe que o leitor seja capaz de estabelecer os links entre o texto que ele lê com aquele ao qual implicitamente o texto faz referência. Isso significa que, quanto mais se lê, mais aumenta a capacidade de compreender e de produzir textos.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. 8a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. 

FIORIN, José Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. 2ª  ed. São Paulo: Edusp, 2011. p 29-36.

TERRA, Ernani. Leitura do texto literário. São Paulo: Contexto, 2014.

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