Papa Hemingway

Tempo de leitura: 5 minutos

Por Ernani Terra  ©

Encontrei ontem meio escondido na Netflix Papa: Hemingway in Cuba, filme recente (2016) do diretor Bob Yari, com Adrian Sparks no papel de Hemingway, e Giovanni Ribisi, no papel do jornalista Ed Mayers.

Papa Hemingway in Cuba, filme de Bob Yari, de 2016.

Baseado em fatos reais, o filme narra três anos de amizade do escritor com o jornalista na Cuba dos anos que antecedem a Revolução que poria fim ao governo de Fulgencio Batista. Papa é o primeiro filme de Hollywood rodado em Cuba depois da Revolução. Só a bela fotografia e a ótima atuação de Sparks já recomendariam o filme. Mas há algo que faz dele um grande filme: Hemingway. Nesses anos que antecedem seu suicídio (o escritor se mataria com um tiro em 1961, um ano após os acontecimentos mostrados no filme), vemos um Hemingway depressivo, abusando do álcool, com problemas conjugais e incapaz de escrever.

Fui apresentado a Hemingway, nos anos 1970, quando Bete, uma colega de escola com quem mantenho contato até hoje, me falou de O velho e o mar. Li o livro (tenho a impressão de que todo mundo começa a ler Hemingway por esse livro) e depois fui ler simplesmente tudo o que ele escreveu. Primeiro, os romances e depois os contos. Como o jornalista Mayers do filme, aprendi muito com Hemingway (o filme mostra uma das qualidades do escritor, a generosidade). Aprendi não apenas em relação aos temas de suas obras e ao mundo de suas personagens, mas também sobre o próprio ato de escrever. Sempre digo às pessoas que leiam os contos de Hemingway para aprender como se escreve um conto, para como fazer com que a história de um conto pareça mais verdadeira do que a realidade. Gabriel García Márquez disse certa vez que Cat in The Rain (Gato na chuva), de Hemingway, era o conto mais bem escrito que conhecia. Mas o que se pode aprender da leitura dos contos de Hemingway? Muita coisa, mas destaco duas fundamentais, ligadas aos efeitos de sentido de realidade que seus contos produzem.

Hemingway nos ensina que um bom texto deve ser um texto enxuto. Concisão é a palavra-chave. Nada de rodeios, não há nenhuma palavra sobrando. Os contos dele parecem ter saído de uma cirurgia em que se eliminou toda a gordura. Não há verborragia. No filme, há a famosa cena em que Hemingway conversa num bar em Cuba com Ed Mayers e pergunta a ele: “Me diga um número de 1 a 10”. O jornalista responde: 6. Hemingway pega uma caneta e, no balcão do bar, escreve num guardanapo: “For sale: baby shoes, never worn.” (Vende-se: sapatinhos de bebê, nunca usados). Entrega o guardanapo a Ed e diz: um conto com seis palavras. Um conto menor que um tuíte, já que tem apenas 28 caracteres. Assistam à cena.

 

A segunda coisa que se aprende com Hemingway sobre como escrever que, de certa forma, relaciona-se à anterior, é relativamente ao foco narrativo. Se há uma história, há alguém que a conta, o narrador, que narra de uma certa perspectiva que determina o que ele vê e, em consequência, o que pode contar. Há basicamente dois focos narrativos: 3a. pessoa e 1a. pessoa. No primeiro caso, o narrador não é personagem da história que narra, é um observador ou testemunha. No segundo, o narrador é também personagem, principal ou secundária, da história.

Hemingway (1899-1961) amava gatos. Para ele, gatos têm honestidade emocional absoluta.

Hemingway, em seus contos, muitas vezes “apaga” o narrador, cuja função passa a ser mínima, usado apenas para indicar quem fala o quê. Chamamos a isso de modo dramático de narrar, na medida em que se assemelha a uma representação teatral, em que tomamos contato com a história diretamente pela boca das personagens.

No conto dramático, o narrador se limita a colocar as personagens em cena e dar voz a elas, que conduzem sozinhas a narrativa como se estivessem em cena em um teatro representando seus papéis diante de um público. Assim, quem ocupa o primeiro plano da narrativa não é o narrador, mas as personagens. Veja, a propósito, o início do conto Cinquenta mil.

— E você como vai, Jack? — perguntei.
— Viu esse Walcott?
— No ginásio.
— Vou precisar de muita sorte com esse garoto — falou Jack.
— Ele não pode com você, Jack — afirmou Soldier.
— Deus queira que não.
— Ele não pode com você nem a chumbo.
— Quem me dera fosse só com chumbo — admitiu Jack.
— Ele parece fácil de acertar — falei.
— Parece — concordou Jack. Ele não vai durar muito. Não vai durar como você e eu, Jerry. Mas, no momento, está com tudo.
— Você despacha ele com a esquerda.
— Pode ser. Pode até ser.
— Trate ele como tratou Kid Lewis.
— Kid Lewis. Aquele judeca — lembrou Jack.

Aristóteles fazia a distinção entre o épico e o dramático. No primeiro, tomamos contato com a história por meio de alguém que a conta, o narrador. No segundo, a história não nos é narrada, mas representada por meio de personagens que estão em cena, como no teatro. No trecho acima, embora uma das personagens exerça também a função de narrador, não há praticamente narração, na medida em que a história vai sendo contada por meio das falas das personagens. Esse recurso confere ao texto um efeito de sentido de realidade, uma vez que a cena vai se desenrolando diante do leitor à medida que ele lê os texto.

Há, evidentemente, muito mais a aprender com Hemingway. Que tal começar agora pela leitura de seus contos?

6 Comentários


  1. Também comecei por “O velho e o mar”, por causa do filme, e por muito tempo senti gosto de sal ao lembrar da luta dos dois… E o conto das seis palavras me extraiu mais lágrimas que muitos romances inteiros.

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    1. Realmente, O velho e o mar é a porta de entrada para Hemingway. Você assistiu ao filme que eu menciono? Tem na Netflix (a propósito é o ou a Netflix?).

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  2. Obrigada , estarei assistindo ao filme. Me encantei muito, sempre soube de alguma maneira que Hemingway era um homem da boemia, pelos contos de bares que ele já escreveu. Como o doutor escreveu no blog, Hemingway fala mesmo muito sobre ” o ato de escrever”, a meneira como o senhor doutor diz que ele sempre “enxuga” tudo que escreve me lembrou de um comentário que ele fez uma vez ao dizer que gosta de polir as histórias que escreve, como colocar em uma bigorna. Me remeteu essa fala dele: “martelá-las e forjá-las a contento ou mesmo apenas moldá-las…” (Contos-Volume 2 E. Hemingway). Obrigada Dr. Ernani.

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  3. Obrigada , estarei assistindo ao filme. Me encantei muito, sempre soube de alguma maneira que Hemingway era um homem da boemia, pelos contos de bares que ele já escreveu. Como o doutor escreveu no blog, Hemingway fala mesmo muito sobre ” o ato de escrever”, a maneira como o senhor doutor diz que ele sempre “enxuga” tudo que escreve me lembrou de um comentário que ele fez uma vez ao dizer que gosta de polir as histórias que escreve, como colocar em uma bigorna. Me remeteu essa fala dele: “martelá-las e forjá-las a contento ou mesmo apenas moldá-las…” (Contos-Volume 2 E. Hemingway). Obrigada Dr. Ernani.

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    1. Oi Vivian, sim Hemingway era um homem da vida e o filme mostra bem isso. Vou-lhe pedir uma grande favor: me chame apenas por Ernani. Dispenso o tratamento doutor.

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