Perguntas difíceis de responder

Tempo de leitura: 5 minutos

O post de hoje tem características bem diferentes dos demais. Em geral, a partir de um tema, discorro sobre ele. Muitas vezes, o tema decorre de alguma observação, crítica ou comentário de leitor. O post de hoje tem por origem uma pergunta que me chegou por e-mail. Em vez de dar uma resposta concreta (isso é um trocadilho, como você verão adiante), preferi responder à pergunta, sugerindo à pessoa que lesse uma crônica antiga de Rubem Braga que lhe seria muito útil para a solução da dúvida apresentada e de outras semelhantes. A propósito a pergunta que me chegou era a seguinte: Vento é um substantivo concreto ou abstrato? Cedo a palavra a Rubem Braga, que responde com sabedoria questões desse tipo.

Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim

Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

O leitor que responder “não sei” a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma “página de bom vernáculo, exemplar”. Tive vontade de responder: “Mera coincidência” — mas não o fiz para não entristecer o homem.

Espero que uma velhice tranquila – no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).

Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. “Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua”. Mas acho que isso é exagero.

Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinquenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairel, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas?

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, ruas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!

In: Para gostar de ler. vol 3 – Crônicas. 17a. ed. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 22-24.

Essa crônica foi publicada originalmente na revista Manchete em novembro de 1959. Passados 60 anos, ela continua atualíssima. Uma única coisa mudou. No trecho em que o cronista afirma que um dos leitores da revista “chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português”, basta trocar a palavra “telegrama” por e-mail ou WhatsApp, para que seja uma crônica do que anda acontecendo no século XXI. Basta ver que a pergunta se vento é concreto ou abstrato não difere em essência da pergunta qual o feminino de cupim?

4 Comentários


  1. Blog excelente. Sou professor há 21, uso suas gramáticas como referência há anos e só hoje, ao procurar uma informação, descobri seu blog. Com alguns muitos anos de atraso, estou “maratonando” as suas postagens, uma mais inteligente, sucinta e informativa que a outra.

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