Mãe, vou vassourar a sala

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A ideia para este artigo surgiu depois de ter ouvido uma criança dizer: “Mãe, vou vassourar a sala” e pretende mostrar que a criança, independentemente de escolarização formal, já tem o domínio das regras da língua que fala.

Quando a criança disse à mãe que ia vassourar a sala, a palavra nova, criada por ela, foi formada por uma regra que ela internalizou a partir da observação de uma ocorrência regular na língua: se telefone gera telefonar; escova, escovar e pente, pentear, vassoura tem de gerar vassourar. Nada mais lógico. Lembremos que uma língua não é apenas um conjunto de signos (palavras) e de regras de combinação dessas palavras: ela tem de ser capaz de produzir novas palavras.

Fato idêntico ocorre quando falantes, crianças ou pessoas adultas, dizem eu fazi e eu trazi, em vez de eu fiz e eu trouxe, ou ainda quando dizem abrido e fazido em vez de aberto e feito. Isso se explica porque a regularidade, em português, é a de os verbos da segunda conjugação, terminação -er, apresentarem, na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo, as seguintes formas: bati, sofri, comi, vendi etc. Daí dizerem eu fazi, eu trazi, seguindo o paradigma, ou seja, a regularidade. O mesmo fenômeno ocorre em fazido e abrido. A regularidade é formar os particípios de verbos da segunda e da terceira conjugações acrescentando a terminação -ido ao radical do verbo (vendido, sofrido, comido etc.). Em síntese: quando dizem eu fazi, eu trazi, fazido e abrido, não são elas quem estão erradas, ao contrário, é o verbo que está “errado”, pois foge à regularidade – por isso mesmo, chamamos a essas formas verbais de irregulares. Acrescento ainda que o número de verbos que apresentam alguma irregularidade é pequeno, se considerarmos o conjunto de todos os verbos da língua.

Sendo a maioria dos verbos em português da primeira conjugação (terminação -ar), não é de estranhar que novos verbos criados pelos falantes (como afirmei, uma língua tem de ser capaz de criar novos signos) pertençam a essa conjugação: deletar (apagar, no jargão da informática), plugar (ligar aparelho à tomada), terceirizar (transferir uma obra ou serviço a terceiros), fulanizar (identificar nominalmente), judicializar (levar uma demanda aos tribunais), lincar (interligar arquivos ou páginas na internet por meio de links), printar (imprimir, no jargão da informática) etc. Das três conjugações verbais, a primeira, terminação –ar, é considerada produtiva.

Cada língua possui sua própria gramática, e seus falantes a conhecem por completo. Claro que há línguas com gramáticas mais parecidas (o português e o espanhol, por exemplo) do que outras (o português e o russo, por exemplo), daí a maior facilidade que temos em aprender espanhol do que russo, já que, por provirem de uma mesma origem (o latim vulgar), português e espanhol apresentam semelhanças não só em suas gramáticas como também em seu vocabulário, o que não ocorre entre português e russo, que não têm a mesma origem.

Ninguém precisa ir à escola para aprender que, em português, o artigo deve preceder o substantivo. Qualquer falante da língua portuguesa conhece essa regra intuitivamente, porque ela é intrínseca à própria língua e faz parte de sua gramática.

Nunca encontraremos um falante dizendo Deixar que conseguiu o é mamar adulto um não de fumante ainda, pois isso seria ininteligível, já que não é uma frase gramatical. Agora, se a frase fosse O fumante é um adulto que ainda não conseguiu deixar de mamar, a mensagem seria compreensível, porque está estruturada segundo regras gramaticais intrínsecas à própria língua. Trata-se, pois, de uma frase gramatical.

Não é somente na criação de frases, porém, que os falantes obedecem a essas regras intrínsecas. Quando criamos uma nova palavra na língua (neologismo), também o fazemos em consonância a essa gramática, obedecendo a regras fonológicas. Basta lembrar a palavra maluquez, usada por Raul Seixas na canção Maluco beleza, para rimar lucidez (“Controlando minha maluquez / misturada com minha lucidez”). Afinal, maluquice não rima com lucidez.

Em português, ninguém chamaria um novo produto – um detergente, por exemplo – de Mlpoil, mas o chamaria, como de fato o chamou, de Limpol, já que, pelas leis fonológicas do português, não existe a sequência mlp. Da mesma forma, ninguém criaria em português a palavra Igatj, porque essa combinação de fonemas não obedece às regras fonológicas do português; porém, em russo, essa combinação é possível por estar de acordo com as regras fonológicas desse idioma (Igatj significa “mentir”em russo).

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https://www.meer.com/pt/75226-titulos-de-obras-e-os-horizontes-de-expectativas

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