Variação linguística

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No artigo, trato em rápidas pinceladas, do tema da variação linguística. Para dar início à discussão, é necessário que se leiam os dois excertos de texto a seguir.

a) O inglês é o veículo de grande parte do conhecimento mundial, especialmente em áreas como ciência e tecnologia. E acesso ao conhecimento é objetivo das educação. Quando investigamos por que tantas nações recentemente fizeram do inglês língua oficial ou o escolheram como língua estrangeira principal nas escolas, uma das razões mais importantes é sempre a educacional – no sentido mais amplo (CRYSTAL, 2005, p. 31).

b) – Não vê que meu defunto seu Vieira tá enterrado já há dois ano… Faiz mesmo agora no Natar.

-A arma dele tá penando aí por esse mundo de Deus sem podê entrá no céu.

– Eu então quis fazê esta oração pra São Gonçalo deixá ele entrá. (MACHADO, 2003, p. 104).

Antes de comentá-los, esclareço que o primeiro faz parte do livro A revolução da linguaguem, de David Crystal (Editora Zahar) e o segundo são fragmentos do conto A piedosa Teresa, de Alcântara Machado. Certamente, você não deve ter tido dificuldades em construir um sentido para eles, uma vez que, em ambos, o conteúdo é expresso em português, língua que você conhece e domina. Mas você deve ter notado que o uso que se fez da língua é diferente em cada um dos trechos, ou seja, embora a língua seja a mesma, ela apresenta variações, de sorte que se pode afirmar que as línguas são marcadas pela heterogeneidade, o que não impede que os falantes possam se compreender uns outros, mesmo que usem variantes de uma mesma língua. Há uma frase, dita por José Saramago no documentário Língua: vidas em português, dirigido por Victor Lopes, que destaca com propriedade a questão da variação linguística. Diz o escritor português: “Não há uma língua portuguesa; há línguas em português”.

As variações linguísticas se dão por diversos fatores e estão presentes tanto na língua falada quanto na língua escrita. Nos exemplos citados, o principal fator que determinou a variação é de natureza sociocultural. Pelo uso que se fez da língua, podemos inferir que, no exemplo a, temos um falante que teve acesso à cultura letrada; no b, reproduz-se a fala de pessoa que não teve acesso a essa cultura.

Os linguistas costumam dizer que a está expresso na norma culta e b, na norma popular. O termo norma culta não é muito feliz, pois pode dar a entender que pessoas que não fazem uso dela não tenham cultura, o que não é verdade, pois todos os povos têm sua cultura. Do ponto de vista estritamente linguístico, a norma culta não é melhor, nem pior, que a norma popular, pois todas as variedades de uma língua se prestam a promover a interação dos falantes. O que ocorre, na prática, é que as pessoas tendem a dar maior prestígio à chamada norma culta, agindo com preconceito em relação às pessoas que não fazem uso dela.

Antes de prosseguir, quero deixar claro que os termos norma culta e norma popular não cobrem todas as variações que possa haver na língua e mesmo no interior de cada uma dessas manifestações da língua.

Como uma mesma língua pertence a uma comunidade de falantes e essa é muito diferenciada, podem-se observar diversas normas. Nos exemplos apontados, a variação decorre de fatores socioculturais, mas ela pode se dar, dentre outros, por fatores geográficos, profissionais, etários etc. Daí se falar em variação:

a) variação geográfica: falantes de regiões diferentes usam a língua de forma diferente e, mesmo dentro de uma mesma região, encontram-se variações do uso da língua. Num mesmo estado, por exemplo, há diferenças entre a língua utilizada por uma pessoa que vive na capital e a empregada pelo habitante da zona rural. Numa mesma cidade, as pessoas que moram nos bairros mais periféricos têm uma linguagem diferente das pessoas que habitam os bairros mais centrais. A variedade linguística característica decorrente de fatores geográficos é denominada dialeto, daí se falar, por exemplo, no dialeto caipira para designar a variedade linguística de pessoas das zonas rurais dos estado de São Paulo.

b) variação sociocultural: decorre, sobretudo, do acesso que os falantes têm à cultura letrada e à escolarização formal. No Brasil, isso tem relação direta com a situação socioeconômica dos falantes.  Uma pessoa com acesso à cultura letrada utiliza a língua de maneira diversa de uma pessoa que não teve acesso a esse tipo de cultura. Com base na variação sociocultural, é que se estabelece a oposição norma culta vs. norma popular. O exemplo a é representativo da norma culta; o b, da norma popular. Retomaremos esse tema logo a seguir.

c) variação individual: a variação, nesse caso, é determinada por fatores como idade, sexo e grau de intimidade dos falantes. As crianças não usam a língua da mesma forma que os adultos, assim como os jovens não o fazem da mesma maneira que os idosos. Quanto ao grau de intimidade, observa-se que a utilização que se faz da língua com nossos familiares e amigos é bastante diferente da que se faz numa entrevista de emprego, por exemplo. No primeiro caso, há um baixo índice de monitoramento, isto é, não ficamos policiando nossa fala, que é marcada pela informalidade. No segundo, já há um alto grau de monitoramento, o falante fica atento às escolhas que faz a fim de adequar a língua a uma variedade que seja socialmente prestigiada. Nesse caso, ela é marcada pela formalidade. A variação presente na fala das pessoas segundo a situação em que se encontram é denominada registro ou estilo, daí se falar em registro formal e informal. Lembrando sempre que é falsa a ideia de que a escrita é marcada pela formalidade e a fala pela informalidade. Há textos falados num registro formal, uma conferência, por exemplo,  e textos escritos num registro informal, um WathsApp, por exemplo.  

d) variação de canal: está ligada sobretudo à presença ou ausência do destinatário na situação de comunicação, isto é, se a recepção do texto ocorre no momento da enunciação, ou posteriormente. A variação de canal diz respeito ao uso da modalidade de língua usada, falada ou escrita, cada uma com suas características.

Embora as variações que se podem observar na língua sejam várias, interessa aqui, especialmente, a variação decorrente de fatores socioculturais, particularmente o conhecimento da chamada norma culta. Mas antes é necessário deixar claro o que se entende por norma.

Norma é o conjunto de realizações reiteradas e consagradas de uma língua dentro de uma determinada comunidade de falantes.

Como a norma é relativa a uma comunidade de falantes, ela possui caráter coletivo e serve de modelo de uso para os falantes da comunidade. No exemplo b, é possível observar um padrão, uma regra típica de determinadas comunidades, como:

  1. indicar o plural apenas no primeiro elemento de uma expressão: “dois ano”. É com base nessa regra que muitas pessoas dizem “as encomendas chegou”;
  2. supressão do fonema /R/ no final de formas verbais do infinitivo: “quis fazê”; “deixá ele entrá”.

Você já deve ter percebido que, na língua, uma mesma coisa pode ser dita de maneiras diferentes. A essas formas de se dizer a mesma coisa de modo diferente damos o nome de variante, ou seja, “as encomendas chegou” e “deixá ele entrá” são formas variantes de “as encomendas chegaram” e “deixá-lo entrar”. As primeiras são características da norma popular e as segundas, da norma culta.

Levando em conta que a gramática de uma língua apresenta os níveis fonológico (relativo aos sons); morfológico (relativo às formas e flexões das palavras) e sintático (relativo às combinações de palavras), as formas variantes ocorrem em todos esses níveis, como você pode observar pelos exemplos a seguir.

Variantes no nível fonológico

Norma popular Norma culta
mortandela mortadela
sombrancelha sobrancelha
oia pra teia olha para a telha
faiz arroiz com pexe aaz arroz com peixe
podê comprá poder comprar

As variantes fonológicas se manifestam na língua escrita por meio de erros de ortografia. Há pessoas que escrevem “abobra” em vez de abóbora porque é essa a variante de pronúncia que adotam.

Variantes nível morfológico

Norma popular Norma culta
o alface a alface
alemãos alemães
ponhei pus
teje preso esteja preso

Variantes no nível sintático

Nível popular Nível culto
Convidei ele. Convidei-o.
A moça que o pai dela é médico. A moça cujo pai é médico.
Não deixa eu esquecer. Não me deixa esquecer.
Os convidado saiu. Os convidados saíram.
Chegou os livros. Chegaram os livros.
Fazem muitos anos. Faz muitos anos.
Haviam muitos motivos. Havia muitos motivos.

Finalizando, quero deixar claro norma culta não deve ser confundido com norma-padrão. A primeira representa usos efetivos que falantes que têm acesso à cultura letrada, é essencialmente urbana e prestigiada socialmente, trata-se de uma variedade linguística. A segunda não tem existência empírica, ou seja, ela não representa o uso de uma comunidade de falantes. Não se trata, pois, de uma variedade linguística. Trata-se de um modelo de língua considerado ideal e veiculado por meio das gramáticas normativas tradicionais e por muitos manuais que se propõem a ensinar a escrever certo. Evidentemente, há gramáticas que mostram que não há uma única forma de se dizer algo e que, quando não se diz daquela forma, é um erro. Tais gramáticas se preocupam apontar normas com base usos efetivos de linguagem culta.       

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