Ambiguidades

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Notícia publicada na Folha de S. Paulo, edição de 28 de março, p. C8, me obriga a retomar assunto já discutido nesse espaço. Para quem não teve a oportunidade de ler o post anterior, retomo alguns conceitos lá apresentados. O título da notícia publicada na Folha de S. Paulo a que me refiro é: Obra roubada de Picasso é entregue em saco de lixo.

Se o leitor se restringir à leitura do título poderá ficar em dúvida se o objeto do roubo foi uma obra que pertencia ao pintor espanhol Pablo Picasso, ou se o objeto do roubo foi uma obra pintada por Picasso. Da forma como está redigida, essa frase comporta, portanto, dois sentidos distintos:

(1) Uma obra de autoria de Picasso foi roubada e posteriormente devolvida num saco de lixo.

(2) Uma obra que pertencia a Picasso (não necessariamente de sua autoria) foi roubada dele.

Quando uma sentença, possui mais de um sentido e, portanto, é suscetível de ser interpretada de mais de uma maneira, dizemos que ela é ambígua ou que ocorreu ambiguidade. Entendo que, em situações de ensino e aprendizagem de língua materna, não basta ao professor dizer que uma frase é ambígua e esclarecer os sentidos possíveis. É necessário que se explicitem os mecanismos linguísticos gerais, sintáticos e semânticos, que produzem sentenças ambíguas.

Ao ler a notícia por inteiro a ambiguidade se desfaz porque a matéria deixa claro que se trata de uma obra pintada por Picasso, roubada em 1999, e devolvida pelo dono do quadro que queria se livrar da obra quando percebeu que era roubada.

 Seguem mais alguns exemplos de sentenças que apresentam ambiguidades:

(2) Nova Iorque vê as primeiras fotos de Marylin Monroe.

(3) O professor encontrou o aluno preocupado.

Em (2), há duas leituras possíveis.

(2a) Nova Iorque vê as primeiras fotos que tiraram de Marylin Monroe.

(2b) Nova Iorque vê as primeiras fotos tiradas por Marylin Monroe.

Em (2a), Marylin Monroe é a fotografada; em (2b), a fotógrafa.

Nesse caso, a ambiguidade resulta do fato de que, fora de contexto, a expressão de Marylin Monroe pode funcionar como agente ou paciente de fotos.

Em (3), as leituras possíveis são:

(3a) O professor, que estava preocupado, encontrou o aluno.

(3b) O professor encontrou o aluno, que é preocupado.

(3c) O professor encontrou o aluno e o aluno estava preocupado quando o professor o encontrou.

Em (3), a ambiguidade decorre do fato de que o adjetivo preocupado pode estar se referindo tanto a professor quanto a aluno e também pelo fato de preocupado poder exprimir uma qualidade permanente ou transitória do aluno.

Seguem mais alguns exemplos:

(4) Na semana passada, pintaram o banco.

 (5) Segure o cabo com força.

 Fora de contexto, essas sentenças podem ser interpretas como:

(4a) Na semana passada, pintaram uma agência bancária.

(4b) Na semana passada, pintaram um assento provido ou não de encosto.

(5a) Segure a extremidade (o cabo da panela) com força.

(5b) Segure a corda com força.

(5c) Segure o militar com força.

Nos exemplos (4) e (5), a ambiguidade decorre da homonímia.

Observem-se mais algumas sentenças:

(6) Pedro tem por hábito contar o que ouve.

(7) Pedro tem por hábito contar o que houve.

Na língua escrita, não há qualquer ambiguidade nessas frases. Em (6), afirma-se que Pedro tem por hábito contar aquilo que escuta e em (7), que ele tem por hábito contar aquilo que ocorreu. No entanto, na linguagem falada, a ambiguidade poderia ocorrer, uma vez que ouve e houve têm exatamente a mesma pronúncia. São homônimos homófonos.

Pelo que expus, pode-se concluir que as ambiguidades podem decorrer de fatores diferentes: uma palavra possuir mais de um sentido (casos de homonímia ou polissemia), ou do fato de a estrutura sintática da sentença possibilitar mais de uma leitura. No primeiro caso, há o que se denomina ambiguidade lexical; no segundo, ambiguidade sintática ou estrutural; nesse caso, cada palavra tem um sentido unívoco, a ambiguidade não está nas palavras, mas na maneira como elas foram combinadas na frase. Em sentenças em que ocorre a ambiguidade sintática, podemos explicitar o duplo sentido, mostrando as duas estruturas sintáticas que coexistem na sentença. Exemplificando:

(8) Pedro me mandou um cartão postal de Paris.

(8a) Pedro mandou de Paris um cartão postal para mim.

(8b) Pedro me enviou um cartão postal no qual aparece algum lugar de Paris. 

(9) É fácil comprar arma roubada no Brasil.

(9a) No Brasil, é fácil comprar arma roubada.

(9b) É fácil comprar arma que foi roubada no Brasil.

Caso particular de ambiguidade sintática é aquela que decorre do pronome reflexivo se. Esse pronome pode ser empregado em construções em que sujeito e complemento designam a mesma pessoa como em Ele feriu-se, ou seja, ele feriu ele mesmo. Nesse caso, não há ambiguidade. Quando, no entanto, esse pronome é empregado em construções que indicam reciprocidade, pode ocorrer duplo sentido como em Neste momento eles se olham. Podemos entender que um olha para o outro (ação recíproca), ou que cada um por si e, ao mesmo tempo, olha  para um espelho.

Há um tipo de ambiguidade que não decorre do fato de uma palavra da sentença ter mais de um significado, ou de apresentar uma estrutura sintática que possibilita dupla leitura. É a chamada ambiguidade de escopo, como ocorre nos exemplos a seguir:

(9) Os alunos dessa sala receberam dois livros.

(10) Carlos e Lúcia se separaram.

Em (9), podemos ter as seguintes leituras:

(9a) Todos alunos desta sala receberam os mesmos dois livros.

(9b) Cada aluno desta sala recebeu dois livros diferentes.

Em (10), as duas leituras possíveis seriam:

(10a) Carlos e Lúcia separaram-se uma do outro.

(10b) Carlos e Lúcia separaram-se cada um dos seus respectivos cônjuges.

As gramáticas tradicionais costumam classificar as ambiguidades como um vício de linguagem, por considerarem que a duplicidade de sentido impediria uma comunicação precisa, atentando contra o princípio de que enunciados devem ser claros. Há casos, sim, em que as ambiguidades são responsáveis por ruídos na comunicação. Mas, em diversas situações, o uso de ambiguidades tem por função criar textos plussignificativos, abertos. É o que ocorre por exemplo em textos poéticos e publicitários.

No poema a seguir de Carlos Drummond de Andrade, a ambiguidade resulta do fato de que a palavra Luzia, que inicia o último verso poder ser lida tanto como forma verbal do verbo luzir, ou como substantivo próprio, designando a primeira namorada. Nesse caso, o uso de inicial maiúscula, que poderia indicar que se trata de substantivo próprio, não funciona como desambiguizador, na medida em que a palavra Luzia será grafada com inicial maiúscula mesmo sendo forma verbal, por estar em início de frase.

Orion

A primeira namorada, tão alta

que o beijo não a alcançava,

o pescoço não a alcançava,

nem mesmo a voz a alcançava.

Eram quilômetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.

(ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa e prosa. Volume único. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973, p. 392.)

A ambiguidade também é usada em textos humorísticos, já que muitas vezes está na base de quiproquós. Na piada a seguir, o efeito cômico decorre do fato de a expressão “festa de quinze anos” admitir uma leitura que normalmente não é feita.

 – Manuel, estou te convidando para a festa de quinze anos de minha filha.

 – Aceito seu convite; irei, mas te digo que só vou poder ficar uns dois anos.

Como assinalei, dependendo da forma como as palavras são combinadas na frase, podem-se obter sentenças ambíguas. Há casos em que a combinação de palavras na frase, apesar de não gerar ambiguidades, criam efeitos de sentido estranhos ou até mesmo absurdos. Para exemplificar, apresento uma expressão que fazia parte do cardápio de um restaurante na cidade de São Paulo.

(12) Ravióli recheado com muçarela de búfala ou vitela.

Não há duplo sentido na sentença, mas, do modo como se combinam as palavras, o sentido é bastante estranho; pois pode-se entender que o ravióli seja recheado com muçarela de vitela. A simples mudança de ordem das palavras na sentença resolveria o problema, como podemos observar em

(13) Ravióli recheado com vitela ou muçarela de búfala.

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