Coerência

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No último post, tratei de quatro fatores de textualidade: intencionalidade, aceitabilidade, situcionalidade, informatividade. Neste, tratarei da coerência, lembrando que coesão e coerência são fatores de textualidade distintos. Enquanto a primeira diz respeito ao plano da expressão, portanto é de natureza linguística, a segunda relaciona ao plano do conteúdo, a aspectos que dizem respeito aos sentidos do texto. Evidentemente, são fatores de textualidade que se imbricam. Por ser relativa ao plano do conteúdo, os fatores responsáveis pela coerência do texto não são apenas de natureza linguística, pois o sentido dos textos depende também do contexto enunciativo e de fatores de fatores pragmáticos, isto é, das intenções dos usuários no processo comunicativo.

A coerência está ligada à inteligibilidade do texto, ou seja, um texto é coerente quando faz sentido para o leitor ou o ouvinte, sendo resultado da continuidade de sentidos. Você pode estar se perguntando: como manter a continuidade dos sentidos para assegurar a coerência?

O primeiro fator que assegura a continuidade dos sentidos é a reiteração de temas (ver post Textos temáticos e figurativos, clicando aqui). Introduzido um tema, ele deve ser retomado na cadeia do discurso, para mantê-lo sempre em foco, ou seja, num texto, ao mesmo tempo que se avança pela introdução de novas informações, há recuos visando retomá-las.

Como os temas podem vir revestidos por figuras, a recorrência de figuras é também fator de coerência. A reiteração de temas e a recorrência de figuras formam cadeias que garantem a continuidade do texto, dando-lhe unidade de sentido, e inteligibilidade, ou seja, coerência. A coesão por substituição e por repetição contribuem para isso.

Exemplifico com um texto bastante conhecido, o poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, aquele que começa com “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá”. De onde vem a coerência dele? Da manutenção de temas como natureza e nacionalismo que são reiterados ao longo do poema. Mais: esses temas vêm recobertos por figuras e a recorrência delas garante a continuidade do sentido. Veja a propósito a recorrência a figuras que remetem ao tema da natureza: palmeiras, sabiá, aves, gorjeia, flores, céu, estrelas.

O outro fator que assegura a continuidade de sentidos é a relação lógica e não contraditória que se estabelece entre sequências menores de texto, por exemplo, entre uma oração e outra. Suponha que você esteja lendo um texto e num determinado momento se depara com o período a seguir:

Ivan estava muito bem de saúde apesar de apesar de ter uma alimentação equilibrada, praticar atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumar e não ingerir bebidas alcoólicas.

No trecho há descontinuidade de sentido, pois o que é afirmado no segundo segmento, que começa pelo conector apesar de, não guarda relação lógica, no caso de oposição, com o primeiro. Como se pode observar, nesse caso a ausência de coerência está relacionada à quebra de coesão, decorrente do mau emprego do conector apesar de. A relação entre os dois segmentos é implicativa, isto é, de causa e consequência, e não concessiva, ou seja, de oposição.

O nexo que liga os dois segmentos é o de causa (ter alimentação equilibrada, praticar atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumar e não ingerir bebidas alcoólica) e consequência (estar muito bem de saúde). Para manter esse nexo, o conector adequado deveria ser porque ou equivalente (visto que, já que, uma vez etc.). Observe.

Segmento 1ConectorSegmento 2
Ivan estava muito bem de saúdeporquetinha uma alimentação equilibrada, praticava atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumava e não ingeriria bebidas alcoólicas. 
 visto que 
 já que 
 uma vez que 

Outra possibilidade de redação seria apresentar a causa primeiro, introduzindo-a pela conjunção como ou pela preposição por e, a seguir, apresentar a consequência. Assim:

Como tinha uma alimentação equilibrada, praticava atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumava e não ingeria bebidas alcoólicas, Patrícia estava muito bem se saúde.

Por ter uma alimentação equilibrada, praticar atividades físicas regularmente sob orientação médica, não fumar e não ingerir bebidas alcoólicas, Patrícia estava muito bem de saúde.

O linguista Michel Charolles, em um texto denominado Introdução aos problemas da coerência dos textos (CHAROLLES, 1997), apresenta quatro regras que garantiam a coerência textual. Apresento essas regras de maneira bastante objetiva.

Regra número 1: regra da repetição

Faça retomada de itens já apresentados no texto.

Lembre-se de que o texto se dispõe linearmente, uma palavra após a outra; mas, como assinalei, é necessário que se façam retomadas do que já foi dito. Isso se faz normalmente pelo mecanismo da coesão por substituição, por meio de anafóricos, como sinônimos, hiperônimos e termos genéricos, e pela substituição por zero (elipse).

Regra número 2: regra da progressão

Ao mesmo tempo que são feitas retomadas, é necessário que o texto avance, que progrida.

Isso ocorre pela apresentação de itens lexicais novos. Na elaboração de um texto, há um constante vai e vem: recuperam-se informações já apresentadas (Regra 1) e renovam-se informações (Regra 2). Os procedimentos mais comuns para se renovar informações já apresentadas são as exemplificações, normalmente introduzidas por expressões como a saber, isto é, por exemplo e a paráfrase, que consiste dizer a mesma coisa por outras palavras. As expressões mais comuns para introduzir paráfrases são: em outras palavras, em outros termos, melhor dizendo, etc.

Regra número 3: regra da não contradição

Informações novas adicionadas ao texto não podem estar em contradição com o que foi posto ou pressuposto anteriormente.

Veja este exemplo citado pela professora Maria Tereza Fraga Rocco em seu livro Crise na linguagem: a redação no vestibular:

Eu não ganhei nenhum presente, só ganhei uma folha em branco, meu retrato de pôster e um disco dos Beatles.

Há uma informação posta em primeiro lugar em que se afirma “eu não ganhei nenhum presente”, no entanto as informações que sucedem contradizem o que foi exposto anteriormente, pois se afirma que ganhou uma folha em branco, o retrato de pôster e um disco dos Beatles. Essa contradição torna o enunciado sem sentido, ou seja, incoerente.

Regra número 4: regra da relação

É necessário que todos os elementos do texto guardem relação entre si.

Essa regra, de certa forma, inclui todas as outras, pois, se coerência é continuidade de sentidos, o texto deve se configurar como um todo em que as partes (palavras, orações, períodos) relacionam-se semanticamente, isto é, deve haver entre elas associação de sentido. Em síntese: a regra da relação faz referência ao fato de que nos textos nada deve estar solto, pois as partes que compõem o todo (o texto) são solidárias entre si.

Por fim, afirmamos que a coerência é uma propriedade dos textos em geral, independentemente do gênero, ou do tipo (descritivo, narrativo, argumentativo, expositivo). Por outro lado, a coerência não diz respeito apenas a aspectos linguísticos, mas também a aspectos contextuais e pragmáticos, de sorte que ela está ligada aos usuários. Um texto que, para um leitor é coerente, pode não sê-lo para outro, pois o sentido não está no texto. Na verdade, os sentidos dos textos são construídos pelo leitor / ouvinte com base nas informações presentes na superfície do texto, ou seja, no plano da expressão. Lembrando ainda que nem sempre o sentido construído pelo leitor ou ouvinte é aquele que o autor pretendeu. Estão aí os mal-entendidos para provar isso.   

REFERÊNCIAS

CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos textos. In: GALVES, Charlote; ORLANDI, Eni Pulcinelli; OTONI, Paulo (Orgs.). O texto: leitura e escrita. Campinas: Pontes, 1997.

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