Discurso político e recurso persuasivo

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No artigo, um trecho do conto O dia do desmoronamento, do escritor mexicano Juan Rulfo (1917 – 1986), autor que já comentei aqui no blogue em dois artigos: Passo do Norte, Juan Rulfo e É que somos muito pobres, serve como ponto de partida para tratar de recurso persuasivo usado por certos agentes políticos a fim de conseguir as adesão do público. Os três contos citados fazem parte do excelente livro Chão em chamas

Segue o trecho de O dia do desmoronamento.

Rememorando minha trajetória, vivificando o único proceder das minhas promessas. Diante dessa terra que visitei como anônimo companheiro de um candidato à Presidência, cooperador onímodo de um homem representativo, cuja honradez não esteve jamais desligada do contexto de suas manifestações políticas e que sim é firme glosa de princípios democráticos no supremo vínculo de união com o povo, aunando à austeridade da qual deu mostrar a síntese evidente de idealismo revolucionário nunca até agora pleno de realizações e de certezas. […]

Meu traço é o mesmo, concidadãos. Fui parco em promessas quando candidato, optando por prometer o que unicamente poderia cumprir e que, ao cristalizar, se traduzisse em benefício coletivo e não em subjuntivo, nem particípio de uma família genérica de cidadãos. Hoje estamos aqui presentes, neste caso paradoxal da natureza, não previsto dentro do meu programa de governo… (RULFO, 2015, p.  133).

A leitura que se faz de um texto deve levar sempre em conta o gênero em que se manifesta. Caso se trate de fragmento de texto, deve-se observar também essa regra. Como se trata de um fragmento de um conto, deve-se observar que o que se lê insere-se no discurso literário e isso determinará nossa leitura, ou seja, o que lemos é ficção, não realidade. No discurso literário, o enunciatário, em decorrência do contrato de ficcionalidade, aceita o texto como verdade no domínio do ficcional.

O que caracteriza o texto como ficcional decorre de sua força ilocucionária, isto é, da intenção do autor de produzir uma obra de ficção. Para isso, é necessário que o leitor aceite esse jogo e compartilhe com o autor a ficcionalidade, não agindo à moda de Dom Quixote, que processava como real o que existia no universo da ficção. Em suma: a ficcionalidade está ligada ao princípio da cooperação, pois depende de um pacto entre produtor do texto e leitor.

Evidentemente, há uma relação entre realidade e ficção, pois esta costuma imitar aquela. Simplificando: embora nossa leitura identifique aí um discurso político, sabemos que não se trata de um discurso político real, mas uma imitação, um simulacro de discurso político. Não é um discurso político verdadeiro, mas quer parece ser verdadeiro, ou seja, busca a verossimilhança.

Verossimilhança diz respeito à adequação entre ficção e realidade; em outras palavras, entre aquilo que é criado pela imaginação e o que efetivamente ocorreu (ou ocorre) no mundo natural. Diz-se que uma obra é verossímil quando ela parece não contrariar a verdade.

A palavra verossímil significa exatamente isso: vero (verdadeiro); símil (semelhante) e, mesmo quando uma obra reconstrói pela linguagem um acontecimento real, há a voz do narrador, que filtra os acontecimentos e, valendo-se de estratégias narrativas e discursivas, torna original e criativo aquilo que conta, estimulando a imaginação do leitor.

Na relação que se estabelece entre enunciador e enunciatário, o primeiro visa à adesão do segundo, persuadindo-o a aceitar seu texto. Em suma: o enunciador não exerce apenas um fazer comunicativo (um fazer-saber), exerce também um fazer persuasivo (um fazer-crer).

Para simular que se trata de um “verdadeiro” discurso político, o enunciador se valeu de algumas estratégias. Uma delas, e a que mais salta à vista, foi usar uma variedade linguística que pudesse ser identificada pelo enunciatário como própria da fala dos políticos quando se manifestam publicamente por meio de discursos.

É evidente que, na tentativa de imitar a variedade linguística dos políticos, o enunciador exagerou nos traços. Esse exagero é, evidentemente, intencional, o que acaba redundando numa caricatura do político em campanha. De semelhante recurso, se valeu o dramaturgo brasileiro, Dias Gomes, criador do impagável Coronel Odorico Paragaçu, prefeito de Sucupira, da série televisiva O bem-amado.

Um dos recursos empregados (e isso alguns políticos fazem muito) é se valer de palavras pouco usadas na comunicação cotidiana. Muitos leitores não devem ter conseguido atribuir significado a palavras como onímodo (um cooperador onímodo é um cooperador que se evolve em tudo, ilimitado), aunando (aunando à austeridade é unindo-se, juntando-se à austeridade).

Outro recurso bastante usado no discurso de políticos populistas e demagogos é usar palavras conhecidas mas fora do sentido usual que, no discurso, acabam não significando nada. Ao dizer que só prometeu o que pôde cumprir para que sua promessa “se traduzisse em benefício coletivo e não em subjuntivo, nem particípio de uma família genérica de cidadãos”, as palavras “subjuntivo” e “particípio”, no trecho, não estão empregadas com o sentido que usualmente damos a ela, de formas do verbo. E o que seria “uma família genérica de cidadãos”? Em resumo: embora os ouvintes possam identificar a expressão sonora, o significante, não conseguem associá-las a um conteúdo, o significado, ou seja, trata-se de discurso-tambor, aquele que faz muito barulho, mas é vazio por dentro.

Quem se vale desse tipo de discurso oco, evidentemente, o faz com a intenção deliberada de construir junto ao público uma imagem, um éthos daquele que fala bem, de que domina a língua, de que conhece a gramática, de quem tem um excelente vocabulário, que é estudado, que é pessoa inteligente e capaz e, portanto, apta para governar em nome dos outros. Trata-se de uma questão de estilo. Infelizmente, como se tem observado na prática, é comum as pessoas se deixarem manipular por esse tipo de discurso.

Os efeitos de verossimilhança do texto decorrem do fato de o enunciador reproduzir, mesmo caricaturalmente, a variedade linguística de um grupo social no exercício de seu trabalho, ou seja, o jargão.

O jargão é uso da língua de um grupo profissional ou sociocultural cujo sentido, na maioria das vezes, é incompreensível para as pessoas que não pertencem àquele grupo. Está, pois, ligado à variação linguística. A língua usada por médicos, advogados e pilotos de avião é exemplo de jargão profissional. A usada por presidiários e de certos grupos de jovens é exemplo de jargão sociocultural e é normalmente designado por gíria. Os políticos também têm seu jargão. Fique atento para não se deixar manipular.

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