Estilo

Tempo de leitura: 12 minutos

O assunto é estilo. Como o tema é extenso, vou dividir minhas reflexões em dois posts.

Se a principal função da linguagem é favorecer a interação entre sujeitos, possibilitando a troca de conhecimentos e experiências, ela também pode ser usada para sensibilizar, para tornar nossas mensagens mais expressivas e convincentes e isso diz respeito ao estilo.

Estilo

Quando se fala em estilo, logo nos vem à cabeça uma frase do Conde de Buffon (1707-1788), que aparece em sua obra Discurso sobre o estilo. Diz Buffon: o estilo é o próprio homem. Mas afinal o que é estilo? Começo recorrendo ao dicionário.

O Houaiss apresenta nada menos do que 15 acepções para essa palavra. Entre as várias acepções, trago aquelas que mais se aproximam dos estudos da linguagem e do discurso. Das 15 acepções do Houaiss, quatro fazem referência à linguagem verbal: as acepções 3, 4, 5 e 6. Vamos a elas:

3 modo pelo qual um indivíduo usa os recursos da língua para expressar, verbalmente ou por escrito, pensamentos, sentimentos, ou para fazer declarações, pronunciamentos etc. <e. dramático> <e. prolixo> <e. conciso>

4 maneira de exprimir-se, utilizando palavras, expressões, jargões, construções sintáticas que identificam e caracterizam o feitio de determinados grupos, classes ou profissões <falava no e. dos comentaristas esportivos>

5 maneira de escrever que segue o padrão social de correção gramatical e elegância <redigiu o texto em bom e.> <manual de e.>

SLING cada um dos graus de formalidade de um discurso falado ou escrito; registro.

Antes de prosseguir, esclareço algumas informações presentes no verbete do Houaiss.

Na acepção 6, SLING é a abreviatura de sociolinguística, que é o ramo da linguística que estuda as relações entre a língua e a sociedade. Na acepção 3, o advérbio verbalmente está empregado no sentido de oralmente. Veja que, na expressão, esse advérbio está relação de alternância com a expressão “por escrito” (“…para expressar, verbalmente ou por escrito…”). Lembro que o adjetivo verbal refere-se a palavra, e esta é manifestada inicialmente pela fala e, num estágio posterior, pela escrita. A palavra verbal provém do latim verbalis, que significa “de palavras”.

Na acepção 3, a palavra estilo remete a algo individual (“…modo pelo qual um indivíduo usa os recursos da língua…”). Nesse sentido, estilo é o mesmo que os linguistas chamam de idioleto, que é o conjunto de atos de fala de um indivíduo. 

Na acepção 4, estilo, ao contrário da acepção 3, não se refere ao uso individual, mas a de grupos sociais (“…de determinados grupos, classes ou profissões…”). Os linguistas chamam de socioleto o conjunto de atos linguísticos de um grupo de indivíduos.

Na acepção 5, estilo faz referência à adequação do uso que os falantes fazem (ou devem fazer) da língua à variedade prestigiada socialmente, a norma culta.

Como se pode notar, estilo está ligado à variação linguística. Trata-se, portanto, de algo que se liga à fala ou discurso, ou seja, a usos efetivos que os falantes fazem da língua.

No campo dos estudos literários, estilo é empregado para designar os usos da língua por autores de uma determinada época. A expressão estilos de época é usada para o conjunto de características de um determinado movimento estético, daí se falar em estilo barroco, estilo clássico, estilo romântico etc. 

Dentre as várias acepções de estilo, centro-me neste post, na concepção de estilo como uso individual da língua, como forma de tornar o dizer mais expressivo. Não foi à toa, portanto, que comecei este post com a citação de Buffon que identifica o estilo ao homem.   

Os estudos sobre estilo são bastante antigos e remontam a Aristóteles em uma obra chamada Retórica. Atualmente, o ramo dos estudos do discurso que trata do estilo é a estilística. Embora as considerações que farei sobre estilo estejam centradas em textos verbais, destaco que o estilo faz parte de inúmeras atividades humanas.

Fala-se em estilo no discurso da moda, jogadores de futebol também se diferenciam pelo estilo de jogar, narradores esportivos, idem. Jornalistas têm seu estilo. Percorrendo colunas de jornais, comprovamos isso. Os próprios jornais têm seu estilo: uns mais sisudos; outros mais popularescos. É falsa, como se vê, a ideia de que o estilo esteja ligado apenas ao discurso artístico.

Durante anos, os estudiosos encaram o estilo de maneiras diferentes. Para alguns, estilo é aquilo que se desvia da linguagem padronizada. O estudo das figuras de linguagem emerge dessa concepção de estilo. Para outros, é um algo a mais que se sobrepõe à maneira usual de dizer, acarretando com isso um sentido novo.

Destaco que o estilo se manifesta nos dois componentes da língua, o léxico e a gramática. No léxico, pela escolha das palavras; na gramática, pela sintaxe, isto é, pela maneira como as palavras são combinadas. 

Estilo e frase

Não é objetivo deste post tratar de questões estéticas. Não tenho a pretensão de apresentar recomendações para formar poetas, romancistas e contistas. Reconheço, porém, que a boa literatura serve como referência para produção de textos não literários.

Estilo não está ligado apenas a usos da língua com finalidades artísticas nem se restringe ao uso das chamadas figuras de estilo, também chamadas de figuras de linguagem ou figuras de retórica.

Estilo está ligado à expressividade que, além de criar uma imagem do enunciador, dotado de voz e corpo, permite que este consiga a adesão do enunciatário ao discurso.

Cada vez que nos valemos da língua temos um ato de fala. A unidade mínima dos atos de fala é a frase. Neste post, falo da frase sob o ponto de vista do estilo.

A frase gramatical, o período, seja simples ou composto, apresenta um organização padrão. A frase simples, aquela organizada em torno de uma única forma verbal, costuma apresentar os termos numa ordem canônica, que é a seguinte: sujeito, verbo, complementos, adjuntos. Isso significa que a disposição dos termos nessa ordem não deve causar estranheza alguma, já que é a esperada pela interlocutor.

Quando se rompe essa ordem, alguma coisa soa diferente ao interlocutor. Esse desvio daquilo que é canônico pode ter valor estilístico. A alteração da ordem normal das palavras e das orações na frase chegou a ser uma das marcas do estilo da literatura de uma época, o Barroco, no século XVII. O excesso de inversões acabou se configurando num rebuscamento da linguagem, tanto que a palavra barroco passou a ser usada como sinônimo de mau gosto. 

A ordem direta favorece a legibilidade; mas, por ser a esperada, têm menos efeito estilístico, já que é a norma. Os desvios da ordem direta podem se configurar recurso estilístico, mas é preciso saber usá-los. Têm de ser feitos levando em conta a expressividade, mas sem prejudicar a legibilidade.

Deslocamentos

Estilo tem muito a ver com o que se destaca, ao que foge do comum, ao que inova. Por isso, a ruptura da ordem canônica dos termos da frase costuma chamar a atenção e adquirir valor estilístico

Veja esta frase do Padre Vieira.

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba.

Trata-se de uma frase composta, formada de cinco orações (observe que há cinco formas verbais) que, embora sintaticamente independentes, se relacionam pelo sentido.

A oração que inicia o período é “tudo cura o tempo” e chama a atenção, porque algo nela soa diferente. O quê, exatamente?  Nessa frase, o autor rompe de forma radical a ordem canônica (sujeito – verbo – complemento), colocando o complemento antes do verbo e o sujeito depois dele. Ruptura total. O único termo que ocupa o lugar padrão é o verbo.

Na ordem canônica, o autor teria dito O tempo cura tudo. Agora reflita: o tempo cura tudo e tudo cura o tempo dizem exatamente a mesma coisa, não há alteração de sentido. O que muda, então? A expressão, isto é, a forma de dizer. Essa mudança na forma da expressão produz o estranhamento. Nesse caso, a alteração da ordem dos termos tem função estilística.

Avanço um pouco mais. As demais orações se encadeiam à primeira. O autor manteve a posição do complemento antes do verbo; mas, nelas, omite o sujeito (o tempo) que estava expresso na primeira oração. A repetição de uma mesma estrutura sintática também tem valor estilístico. Comentarei esse recurso, quando falar sobre paralelismo no próximo post.

Numa das passagens de Dom Quixote, de Cervantes, o escudeiro Sancho Pança, um homem bastante simples, diz ao cavaleiro: “Luz dá o fogo; claridade dão as fogueiras”.

Um pensamento simples ganha uma força expressiva muito grande. Sancho, da mesma forma como fez Vieira, subverte radicalmente a ordem canônica, antecipando o complemento para antes do verbo e deslocando o sujeito para depois dele. Veja que é o fogo que dá a luz e são as estrelas que dão a claridade. 

Se Sancho dispusesse os termos na ordem canônica, diria O fogo dá luz; as fogueiras dão a claridade. O conteúdo informacional seria o mesmo, mas a forma que o escudeiro de Dom Quixote escolheu é mais expressiva porque surpreende o interlocutor. Isso é um fato estilístico, a maneira particular de Sancho dizer as coisas.

Aliás, se você leu o Dom Quixote, deve ter percebido que Sancho Pancho tem um estilo de dizer diferente do estilo de Dom Quixote. Uma das coisas que chamam atenção no estilo do escudeiro é que ele costuma, sempre que tem oportunidade, de inserir um ditado popular em sua fala. A repetição sistemática desse procedimento é um dos fatores que caracterizam o estilo do escudeiro. Sancho fala por provérbios, é uma homem do povo, não um fidalgo como Dom Quixote, e sua fala é a fala e a sabedoria do povo.

A alteração da ordem canônica da frase com o deslocamento de um termo de sua posição normal é ainda um recurso usado para se obter ênfase. Normalmente, a ênfase recai sobre o termo que abre a frase.

As frases apresentam uma estrutura do seguinte tipo: aquilo ou aquele de que se fala, que correponde ao tema, e uma informação sobre o tema, aquilo que se fala, a que se dá o nome de rema. Em síntese: as frases apresentam a articulação tema / rema, sendo o tema a informação conhecida e o rema a informação nova. Há autores que se referem à articulação tema / rema por tópico / comentário, sendo o tópico o correpondente ao tema e o comentário o correspondente de rema.

Do ponto de vista sintático, o tema costuma ser o sujeito e o rema o predicado. No entanto, nem sempre o tema corresponde ao sujeito, como você pode observar nos exemplos a seguir:

“A onça, o povo dizia que ela tinha vindo de longe.” (Guimarães Rosa)  
“As chaves ele tirou no mesmo instante daquele bolso; como da vez anterior, tudo estava em um molho, em um aro de aço.” (Dostoiévski)

No primeiro exemplo, o tema é “a onça”, é dela que se fala, mas o sujeito gramatical é “o povo”. Na segunda, o tema é “as chaves”, mas o sujeito gramatical está representado pelo pronome pessoal “ele”. Observe o efeito estilístico que essas frases produzem comparando-as com as seguintes:

O povo dizia que a onça tinha vindo de longe.  
Ele tirou no mesmo instante as chaves daquele bolso; como da vez anterior, tudo estava em um molho, em um aro de aço.

Não há menor dúvida de que as frases originais são mais expressivas, já que destacam o tema.

Como usamos frases para falar de alguém ou de alguma coisa, o usual é que o tema venha abrindo a frase. Como o tema é, em geral, exerce a função sintática de sujeito, é comum que o sujeito venha abrindo a frase.

Em muitos casos, no entanto, não queremos ressaltar o sujeito, ou porque ele não corresponde ao tema, ou porque queremos que a ênfase recaia em outro termo. O que fazemos? Antecipamos o termo que queremos destacar para o início da frase, como nos exemplos que seguem.

A segunda temporada da série estreia domingo na Netflix.  
Domingo, a segunda temporada da série estreia na Netflix.  
Na Netflix, a segunda temporada da série estreia domingo.  
Estreia domingo a segunda temporada da série na Netflix.

No primeiro exemplo, enfatiza-se aquilo que estreia, o sujeito “a segunda temporada da série”; no segundo, enfatiza-se o “quando” (domingo); no terceiro, o “onde” (na Netflix); no quarto, a ação verbal, o acontecimento (estreia).

No próximo post, volto ao assunto estilo tratando de paralelismo sintático e vozes verbais.


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