Figuras de linguagem

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O estudo das chamadas figuras de linguagem desde há muito tempo é objeto de uma disciplina denominada retórica. Suas origens podem ser encontradas em Aristóteles (séc. IV a.C.), ligando-se à ideia de bem dizer, de argumentar. A retórica entrou em um período de declínio quando abandonou o aspecto discursivo, ou seja, como organizar os textos a fim de persuadir o leitor/ouvinte, voltando-se exclusivamente aos ornamentos do discurso e para o uso de palavras e expressões que visavam tornar o discurso mais belo mas não necessariamente persuasivo. Isso pode ser observado em algumas manifestações literárias do fim do século XIX, particularmente na poesia dos parnasianos. Há um poema de Olavo Bilac, não à toa chamado de Profissão de fé, que faz a apologia de um discurso caracterizado pelo ornamento. A seguir, uns trechos desse poema.

Invejo o ourives quando escrevo:

Imito o amor

Com que ele, em ouro, o alto relevo

Faz de uma flor.

Imito-o. E, pois, nem de Carrara

A pedra firo:

O alvo cristal, a pedra rara,

O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,

Sobre o papel

A pena, como em prata firme

Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,

A ideia veste:

Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem

Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase; e, enfim,

No verso de ouro engasta a rima,

Como um rubim.

Fonte: Bilac, 2014.

Mas a retórica ressurge no século XX, graças aos trabalhos de Jean Dubois, do Grupo μ e de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, que recolocam os estudos da retórica voltados para a argumentação e para a organização do discurso, retomando a concepção aristotélica de retórica como exposição de argumentos ou de discursos que visam persuadir o leitor/ouvinte. O professor Luiz Antonio Ferreira (2010, p. 145) sustenta que “a nova retórica reveste de atualidade as premissas da retórica aristotélica e propõe uma metodologia de análise não apenas de discurso, mas do próprio comportamento social”. A retórica deixa então de centrar-se sobre os ornamentos do discurso e volta-se para as técnicas discursivas, no que se refere não só à produção, mas também à interpretação de textos. É nessa perspectiva (discursiva) que nos interessam as figuras de retórica.

A relação de figuras de retórica é bastante extensa. Em alguns casos, uma diferença sutil levou os teóricos a dar nomes diferentes para um mesmo procedimento retórico, por exemplo, a figura que denominamos inversão recebe o nome de hipérbato, anástrofe ou sínquise, dependendo do modo como os termos aparecem invertidos no enunciado. A diferença entre antonomásia e perífrase está apenas no termo a que elas se referem, se pessoa ou não pessoa. Não há distinção relevante entre sinédoque e metonímia, tanto que atualmente não se tem feito mais a diferença entre essas duas figuras.

Já tratei aqui no bloque, da  metáfora e da metonímia / sinédoque. Tratarei, em próximos posts, de outras figuras de retórica, mas advirto de que não tem sentido algum memorizar uma lista de figuras; o importante é que se perceba como elas constroem o sentido dos textos.

O texto a seguir é um capítulo do romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Para quem não leu o livro, ou não viu o filme de mesmo nome, dirigido por Luiz Fernando Carvalho, esclareço que o texto é dito pelo pai na hora da refeição à sua família.

…e quanto mais engrossam a casca, mais se torturam com o peso da carapaça, pensam que estão em segurança, mas se consomem de medo, escondem-se dos outros sem saber que atrofiam os próprios olhos, fazem-se prisioneiros de si mesmos e nem sequer suspeitam, trazem na mão a chave mas se esquecem de que ela abre, e, obsessivos, afligem-se com seus problemas pessoais sem chegar à cura, pois recusam o remédio; a sabedoria está justamente em não se fechar nesse mundo menor: humilde, o homem abandona a sua individualidade para fazer parte de uma unidade maior, que é de onde retira sua grandeza; só através da família é que cada um em casa há de aumentar sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas, é preservando sua união que cada um em casa há de fruir as mais sublimes recompensas; nossa lei não é retrair mas ir ao encontro, não é separar mas reunir, onde estiver um há de estar o irmão também…

Fonte: Nassar, 2005, p. 145-146.

Trata-se de um texto predominantemente figurativo, ou seja, o tema é recoberto por palavras concretas. Observando como essas figuras se encadeiam, construímos um sentido para o texto. As figuras se organizam em dois blocos: um remetendo à ideia de retração, de individualidade, de separação; outro, à ideia de expansão, de união, de reunião. Figuras como casca, carapaça, esconder, atrofiar, prisioneiro, retrair e separar remetem à ideia de retração; figuras como chave, abrir, aumentar, família e reunir, à ideia de expansão.

A essa oposição subjazem outras: separação / união; indivíduo / família. As figuras referentes à retração ligam-se à ideia de proteção: a casca e a carapaça protegem o ser do ataque externo. No texto, entretanto, essa ideia de proteção é desconstruída na medida em que mostra que a proteção não consiste na retração, no fechar-se em si mesmo, no enclausurar-se, mas na expansão do indivíduo, que se dá reunindo em família, pois é por meio dela que se expande a existência.

Como se pode observar, esse texto se constrói pela aproximação de figuras que se opõem semanticamente. Damos o nome de antítese à figura de retórica que consiste em aproximar figuras ou temas que se opõem pelo sentido. O uso de antíteses no texto tem efeito de sentido argumentativo, pois, aproximando opostos, permite ao leitor estabelecer relações comparativas. O texto orienta argumentativamente no sentido de que existe uma falsa ideia de proteção no retrair-se, revelando que a verdadeira proteção do indivíduo está no reunir-se aos outros por meio da família.

Referências

BILAC, Olavo. Profissão de fé. Disponível em http://biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/profissaodefe.htm Acesso em 6 ago. 2021.

FERREIRA, Luiz Antonio. Leitura e persuasão. São Paulo: Contexto, 2010.

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das letras, 2005.

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