Frase 2: Frase e sentido

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No artigo, dou prosseguimento à discussão iniciada no post anterior sobre o assunto frase. Naquela ocasião, retomei alguns conceitos básicos. Neste artigo, centro considerações sobre a frase, sobretudo, do ponto de vista do sentido que as frases veiculam.

Frase e sentido

No discurso, isto é, no uso efetivo da língua, você poderá observar que o sentido das frases pode estar muito além das palavras que as formam. Em outros casos, uma frase afirma uma coisa, mas está significando outra. Há ainda usos em que a frase apresenta uma forma gramatical interrogativa, mas o propósito comunicativo é um pedido. Em outros casos, as frases apresentam em sua superfície elementos que levam a conteúdos implícitos. Há também casos em que na frase há um maior ou menor comprometimento daquele que fala em relação àquilo que fala. Enfim, o sentido da frase não é necessariamente dado por sua forma gramatical. Nos próximos itens, discuto alguns desses casos

Atitude do falante

As frases expressam a atitude do falante em relação àquilo que diz. As atitudes são as mais diversas: de certeza, de dúvida, de ordem, de pedido, de ordem, de desejo etc. Essas atitudes são manifestadas pela entoação e, do ponto de vista linguístico, pelos modos verbais (indicativo, subjuntivo, imperativo). Veja as atitudes expressas por cada um deles.

  • Modo indicativo

O indicativo revela uma atitude objetiva do falante em relação ao processo verbal, apresentando o fato expresso pelo verbo como certo, preciso, seja ele passado, presente ou futuro.

Letícia estuda Psicologia.  
Valéria resolveu o problema rapidamente.
O professor não dará aulas próximo semestre.
  • Modo subjuntivo

O subjuntivo expressa uma atitude subjetiva do falante em relação ao processo verbal, permitindo a expressão de estados emocionais, como os de dúvida, desejo, condição:

Ele disse que talvez ao cinema.
Espero que eles me convidem para a festa.
Se ele mesmo não me dissesse, não acreditaria.

O subjuntivo é normalmente empregado nas orações dependentes de outras (subordinadas). No entanto, pode aparecer, no presente, em orações independentes para exprimir:

  1. desejo: Esperemos ansiosamente a chegada dos atletas.
  2. hipótese: Talvez encontrem os verdadeiros culpados.
  3. ordem ou proibição: Que entrem os acusados. Revoguem-se as disposições em contrário.
  • Modo imperativo

O imperativo revela uma atitude de interferência do falante sobre o interlocutor, exprimindo mando, ordem, solicitação, conselho ou convite.

Como o imperativo pode expressar diversas atitudes do falante, a entoação da frase é fundamental para exprimir a ideia pretendida.

Como nesse modo verbal o falante sempre se dirige a um interlocutor, o imperativo só possui as formas que admitem um interlocutor (segundas e terceiras pessoas e primeira pessoa do plural):

Devolva-me os documentos. (ordem)
Passe-me o açúcar, por gentileza. (solicitação)
Não deixe o carro na rua, guarde-o na garagem. (conselho)

Comprometimento do falante

As frases podem exprimir o comprometimento do falante em relação àquilo que fala. Observe:

  1. Eu tenho certeza de que ele foi o responsável pelo acidente.
  2. Não tenho dúvidas de que ele foi o responsável pelo acidente.
  3. Desconfio de que ele foi o responsável pelo acidente.
  4. Acho que ele foi o responsável pelo acidente.

Há um conteúdo informacional veiculado expresso na oração “ele foi o responsável pelo acidente”. Esse conteúdo é introduzido por outra oração que revela o grau de comprometimento do falante. Nos exemplos a e b, ele se compromete com o que é dito; já em c e d, não se compromete. Em outros termos, em a e b o enunciador se responsabiliza sobre o que enuncia; em c e d não se responsabiliza pelo dito.

Outra forma usada para evitar o comprometimento é atribuir o conteúdo informacional a outrem não identificado (em muitos casos, esse outrem nem existe de fato) como em:

Ouvi dizer que ele foi o responsável pelo acidente.  
Contam que ele foi o responsável pelo acidente.

Implícitos

Muitas vezes, uma frase pode remeter a sentidos que não estão expressos, mas que podem ser inferidos. Há algum tempo um site de notícias trazia a seguinte manchete: Mulheres já podem dirigir na Arábia Saudita

Essa frase traz um conteúdo implícito: antes as mulheres não podiam dirigir na Arábia Saudita. Há na frase um elemento linguístico que permite ao leitor ou ouvinte inferir o conteúdo implícito: o advérbio . Veja outro exemplo:

Pedro deixou de fumar

Essa frase remete a um conteúdo implícito: Pedro fumava anteriormente. O elemento linguístico que permitiu inferir o conteúdo implícito é a expressão deixou de.

Os linguistas dizem que nesses casos ocorreu pressuposição. Há um posto, a frase, e um pressuposto, o conteúdo implícito. Na pressuposição, há sempre na frase posta uma expressão linguística que permite inferir o conteúdo pressuposto.

Há, no entanto, especialmente na linguagem falada, certas frases que remetem a informações implícitas sem que haja qualquer elemento linguístico que leve a ela (não se trata de pressuposição, portanto). O interlocutor infere o conteúdo implícito a partir de sua experiência pessoal e do contexto em que ocorre a interação.

Imagine a seguinte situação. Há uma importante reunião marcada na empresa para começar exatamente às 9 horas da manhã. Um dos diretores chega esbaforido poucos minutos antes das 10 horas da manhã, entra e diz: O trânsito está péssimo.

Evidentemente o propósito comunicativo de quem proferiu essa frase não era informar as condições do trânsito naquela manhã, mas justificar-se e, de certa forma, pedir desculpas pelo atraso. Essa frase, dita naquelas circunstâncias, contém uma informação implícita. Ocorre que nela não há qualquer elemento linguístico que leve a ela.

Veja um outro caso. Quando tratei dos tipos de frase, falei em frases declarativas e interrogativas. Ocorre que podemos usar uma frase declarativa não para afirmar ou negar algo, mas para fazer um pedido. Quando uma pessoa diz para outra: Está um calor insuportável aqui dentro, a frase pode estar expressando apenas uma constatação de que está calor, ou seja, quem fala afirma exatamente aquilo que está dito, sem qualquer subentendido. Nesse caso, tem-se uma frase declarativa. Mas, numa determinada situação comunicativa, aquela mesma frase pode conter uma informação implícita: um pedido para que se abram as janelas ou se ligue o ar-condicionado.

Na conversação cotidiana, fazemos isso com muita frequência como forma de polidez. Quantas vezes você já não disse a alguém: Você teria uma caneta?, em vez de Me empreste a caneta, que soa muito imperativo?

Ironia

Observe o fragmento a seguir, extraído do livro Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

– Com força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Ânimo, ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isso. “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto.” São palavras de Jesus Cristo. Já se vê que a comadre era forte em história sagrada.

A última frase não deve ser lida literalmente já que o que está explícito no enunciado não corresponde exatamente ao que se diz. Em termos mais técnicos, ouvem-se aí duas vozes: uma presente no enunciado e outra que corresponde à enunciação. Diz-se uma coisa, mas de fato está se dizendo outra, que é o contrário do efetivamente dito. A ironia combina, pois, dois planos: o do enunciado e o da enunciação. O primeiro orientado positivamente; o segundo, negativamente.

Ao afirmar “Já se vê que a comadre era forte em história sagrada”, orientação positiva, o enunciador está dizendo que a comadre não sabe nada de história sagrada, orientação negativa.

A frase “Já se vê que a comadre era forte em história sagrada” contém uma ironia, pois a referência textual da comadre contém um erro, na medida em que a frase “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo, uma vez que aparece no Velho Testamento (Gênesis), em que Jesus Cristo não aparece.

É evidente que só os leitores que sabem que a frase “Eu multiplicarei os trabalhos de teu parto” não foi dita por Jesus Cristo perceberão a ironia.

Veja um outro exemplo. No prefácio da edição brasileira do Curso de linguística geral, de Ferdinand Saussure, feita pelo professor Isaac Nicolau Salum, há a seguinte passagem:

“A 1ª  edição do Curso é de 1916, como se sabe, ‘obra póstuma’, pois Saussure faleceu a 27 de fevereiro de 1913. A versão portuguesa sai com apenas 56 anos de atraso.”

Na última frase, afirma-se algo que é o contrário do que efetivamente se diz. Se a edição demorou 56 anos para sair, o uso do advérbio “apenas” confere à frase sentido irônico.

Lítotes

Quando falei de tipos de frase, chamei a atenção para o fato de que as frases podem afirmar ou negar algo. Muitas vezes, uma frase afirma algo pela negação de seu contrário. Trata-se de uma figura de linguagem que os estudiosos do texto e do discurso chamam de lítotes.

O nome pode lhe parecer estranho (e é mesmo). Volto a insistir que o importante não é dominar uma nomenclatura (o nome da figura) mas perceber os sentidos que se escondem por trás de uma forma linguística. Um enunciador, como vimos, pode usar uma forma interrogativa para pedir. Na lítotes, a forma gramatical é negativa, mas o sentido é afirmativo. Veja que essa figura se aproxima muito da ironia. Veja alguns exemplos:

Ela não é nada boba.
Luana não é nada feia.

Embora ambas, do ponto de vista gramatical, tenham estrutura gramatical negativa, afirmam algo. Na primeira, afirma-se que ela é esperta; na segunda, que Luana é bonita.

Como afirmei no post anterior, as figuras de linguagem não devem ser vistas como ornamentos do discurso, recursos para tornar mais belo o que pretendemos dizer. Veja que as figuras que comentei, lítotes e ironia, estão sendo empregadas como recursos argumentativos, como uma forma de enfatizar o que se pretende dizer.


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